Em 1985, decidiu-se que a 9 de maio passaríamos a celebrar o Dia da Europa, mas porquê?
de Francisco Lemos Araújo
No dia 9 de maio de 1950, o ministro dos negócios estrangeiros de França, Robert Schuman, lançou as bases para a criação de uma instituição europeia destinada à gestão do carvão e do aço, com o objetivo de criar um clima de paz na Europa. Não só indicou o caminho institucional dessa mesma organização, como também definiu o quadro de valores que deviam orientar a sua existência: solidariedade, desenvolvimento económico e social e equilíbrio ambiental e regional. Conhecida como "Declaração Schuman", é tida como o ponto de partida do projeto europeu.
Essa ideia ganhou vida em 1951, com criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e, volvidos 70 anos e de inúmeras transformações, temos hoje a União Europeia (UE), sustentada nos mesmos ideais.
Mas fará sentido celebrarmos o Dia da Europa num contexto de guerra na Ucrânia, ou seja, quando o fim último que levou à criação daquilo que hoje é a UE – a paz – não existe? Diria que faz ainda mais sentido.
O projeto europeu é uma história de pequenos passos, sendo que nem todos foram dados em tempos de paz total, nem em contextos simples. E mesmo que os contextos externos fossem pacíficos, como seria possível a existência de uma organização que desde a sua criação até 2020 foi sempre crescendo em número de participantes, ao mesmo tempo que aprofundava os seus domínios de ação existir sem quaisquer tensões? Não seria, porque a integração gradual com manutenção de soberanias coloca em conflito interesses comuns e internos de cada país.
No entanto, mesmo no meio de todas as tensões, a UE foi sempre evoluindo, com alterações institucionais, alargamento de competências e aumento da sua intervenção. Isto porque é um projeto multilateral e participado. A UE apenas evoluiu porque não dependia de uma personalidade, do pensamento exclusivo de uma só pessoa, mas porque contou sempre com as divergências de quem dela fazia parte.
Hoje, quando se fala na UE é patente o afastamento que se sente, pelo menos por cá. Ainda temos pouca consciência de que, na verdade, nós não estamos apenas na UE, nós somos a UE.
O conhecimento que temos e a atenção que prestamos aos assuntos europeus são manifestamente desproporcionais em relação à importância que esses têm na nossa vida. Mais de metade da legislação que aplicamos em Portugal provém da UE, a resposta e a recuperação pós-covid foi, em larga escala (para não dizer exclusivamente), decidida em Bruxelas e cerca de 70% das importações e exportações de Portugal são feitas de/para países da UE.
No entanto, a grande maioria de nós sabe pouco de como as coisas funcionam por “lá” e como pode mudar a sua própria vida através de Bruxelas. Afinal de contas, Portugal registou uma taxa de abstenção de 69,3% nas últimas eleições europeias.
Com isto não quero dizer que o problema da falta de conhecimento do impacto da UE nas nossas vidas seja apenas nossa. Desde há largos anos que existe uma incapacidade das instituições em acederem diretamente aos cidadãos.
Em abril de 2021 arrancou a Conferência sobre o Futuro da Europa, uma iniciativa cujo objetivo era pôr os cidadãos a discutir soluções para os problemas existentes, sendo que dessas discussões saiu um relatório com inúmeras propostas, que foi apresentado na passada segunda-feira aos presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Nunca tinha havido uma iniciativa deste género, no entanto, grande parte de nós passou ao lado disto. Mais uma vez a ideia é boa, mas não houve capacidade de fazer chegar isto aos cidadãos.
No ano passado surgiu a Geração KNow, um programa de formação sobre instituições e assuntos europeus organizado pela eurodeputada portuguesa Maria Manuel Leitão Marques, cujo objetivo é precisamente discutir os assuntos estruturais e atuais da UE, aproximando os cidadãos da vida da União. Tenho a oportunidade de estar a participar na segunda edição que se iniciou há uns meses, mas, ao mesmo tempo, espanta-me como é que uma iniciativa destas é tão recente, atendendo a que somos parte da UE desde 1986.
Não podemos andar a falar da Europa apenas de 5 em 5 anos, quando há eleições para o Parlamento Europeu. Mesmo quando as há fingimos que discutimos a UE quando, na verdade, perdemos mais tempo com problemas internos e partidários do que a falar sobre os temas centrais daquela eleição.
Hoje em dia, a UE tem de começar a discutir se faz sentido avançar com algumas mudanças estruturais, que podem implicar uma revisão aos Tratados.
Recentemente, foram aprovadas no Parlamento Europeu uma série de alterações ao sistema eleitoral, entre as quais:
- A criação de um círculo eleitoral uninominal europeu que elege 28 eurodeputados adicionais em listas a nível da UE;
- A implementação de eleições no dia 9 de maio em todos os Estados-Membros (ou seja, haver finalmente um dia comum de eleições); e
- A instituição do direito de os cidadãos votarem no Presidente da Comissão, sob um sistema de «candidato principal» (Spitzenkandidaten) através das listas a nível da UE. Esta terceira parece-me a mais interessante, pois os cidadãos da UE poderão ter uma intervenção mais direta na eleição do presidente da instituição europeia de detém o poder executivo.
Por outro lado, um dos pontos mais confusos na arquitetura europeia é a liderança tripartida, com a qual ninguém sabe muito bem lidar. Se for preciso indicar um líder, dependendo dos temas, este tanto pode ser a Presidente da Comissão, do Parlamento Europeu ou do Conselho Europeu, sendo que ainda existe a presidência rotativa do Conselho da UE. Creio que fará sentido repensar o papel do Presidente do Conselho Europeu, conferindo à Comissão um peso político maior, acima de tudo, na representação externa da UE.
Outra questão que tem sido pouco abordada tem sido o problema demográfico. Os índices de renovação geracional na Europa têm vindo a decair, o que trará, no futuro, complicações aos sistemas de segurança social e de falta de mão de obra. O excesso de reformados face ao pouco número de trabalhadores contribuintes levará, de forma inevitável, a uma rutura do sistema. Desta forma, a política de imigração da UE tem de ser revista, de modo que se crie um verdadeiro sistema de acolhimento dos migrantes que chegam à Europa, qualificando-os quando necessário, para que possam ser integrados na sua plenitude.
A UE fez um caminho com mais de 70 anos, com avanços e recuos, para chegar ao seu estado atual e ter um peso verdadeiramente grande nas nossas vidas. Devemos exigir que esta esteja mais presente, que se dê a conhecer melhor e se deixe escrutinar com mais frequência. Porém, devemos também ser mais ativos e participativos.
Ao contrário do que se pensa, a UE não vive sem os seus cidadãos, e estes não podem só ficar preocupados com a sua manutenção quando aparecem uns candidatos nacionalistas. A UE existe todos os dias, por isso, celebremo-la.
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