Fita Curta - "Years and Years"
- Crónico.
- 27 de fev. de 2021
- 2 min de leitura
"Years and Years" é muito sobre este aceitar duma realidade desnorteada, de líderes políticos que se apresentam perante os cidadãos demasiado estúpidos para verificar factos e demasiado induzidos na crença de que esses factos (ou a ciência) não são reais.

Artigo de Afonso Abecasis
Quando a ficção já não é ficção
Uma visão implacável, angustiante e profundamente inteligente, sobre onde estamos e para onde caminhamos: o populismo cego, os Trumpismos, a paranoia tecnológica – o caos enlouquecido deste novo mundo. Com uma criatividade fora do comum, o guionista Russell T. Davies, juntamente com Simon Jones e Lisa Mulcahy, conseguiu abordar e refletir sobre estes temas duma forma sem precedentes, retirando o brilho a “Black Mirror” quando se trata de imaginar o que não queremos imaginar.
Estendendo-se por 15 anos no futuro da grande e diversa família Lyons no Reino Unido, "Years and Years" passa a primeira hora a saltar freneticamente e convincentemente entre esta década e meia, preparando-nos para um conjunto de histórias que exploram uma visão alternativa: um pequeno desvio da humanidade, progressivamente desequilibrada.

Aqui, Donald Trump não só é reeleito como decide lançar um míssil nuclear numa ilha artificial chinesa; a Rússia invade a Ucrânia; a economia, o mercado de ações e a banca colapsam; a tecnologia percorre novas barreiras entre ser humano e ser digital e o mundo parece demasiado apático ou resignado face às alterações climáticas – o desaparecimento das florestas amazónicas ou o degelo do Pólo Norte.
"Years and Years" é muito sobre este aceitar duma realidade desnorteada, de líderes políticos que se apresentam perante os cidadãos demasiado estúpidos para verificar factos e demasiado induzidos na crença de que esses factos (ou a ciência) não são reais. O grande desafio – que esta série concretiza – é pegar no que todos nós temos sentido nos últimos anos e transformá-lo numa narrativa, mais real do que fictícia, e não num sermão sobre as nossas falhas. O resultado é um olhar comovente, dramático e às vezes até divertido de um mundo cada vez mais rápido, quente e alienado.

Talvez o que melhor representa Years and Years seja a conversa entre dois dos irmãos Lyons, Daniel e Stephen, quando este último diz: "É como se tivéssemos ido longe demais (…) imaginámos demasiado. Explorámos o sistema solar. Construímos o Hadron Collider e a Internet. Pintamos todas aquelas pinturas e escrevemos todas aquelas grandes canções e depois… pop! O que quer que tivéssemos, perfurámo-lo. E agora está tudo a desmoronar-se.”
Outro ponto característico é a atuação de Emma Thompson, que dá vida a Vivienne Rook, uma magnata financeira transformada em populista totalitária. O que ela personifica é a apatia e a indiferença sobre as intermináveis guerras que se espalham pelo mundo fora. Para ela, os verdadeiros problemas são os mais simples, reais e locais que os cidadãos enfrentam: a recolha do lixo ou os carros que bloqueiam as passadeiras - a desumanidade e o foco no nosso próprio umbigo.
Ignorância, polarização política, egoísmo, racismo, erosão dos direitos civis e humanitários – é isto que Davies expressa quando todos nós, num desabafo coletivo, proferimos que este mundo está cada vez mais confuso e complicado. E nesta confusão e complicação encontramos algum conforto: que não somos, de todo, os únicos a pensar que as coisas podem e deviam melhorar.
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