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Folie à deux. Estamos todos loucos?



Poderia afirmar que a crença num Deus ou numa religião é uma fantasia. Aliás, muitos filósofos teológicos admitem, após fracassos tomistas e cartesianos, que a existência de Deus não é matéria cognoscível... estão basicamente a dizer-nos que se encontra no âmbito de uma psicologia esotérica, no tal âmbito do fantástico.


"El caballo raptor", de Francisco Goya

Ensaio de Francisco Mourão

Estudante de Medicina, FMUL



[Ceci n'est qu'un essai]


A evidência de uma patologia psicológica que pode ser transmitida, uma insanidade infeciosa, soa-me imprescindível para que Nietzsche fosse mais além na sua crítica à Religião.


Quando, em 1942, Gralnik publica os diferentes subtipos de folie à deux, que é o mesmo que dizer distúrbio psicótico/delirante partilhado, baseado numa vastidão de situações clínicas que se foram acumulando, dá-nos a entender sob que formas e em que contextos esta transmissão de patologias do foro psicológico se dá de um indivíduo para outro. Os quatro subtipos de folie à deux são folie imposée, folie simultanée, folie comuniquée e folie induite.


Adaptados à prática clínica atual, o ICD-10 (mais recente revisão da classificação médica de problemas de saúde) categoriza o distúrbio delirante induzido – folie à deux – de acordo com três critérios, os seguintes:

  • Duas pessoas partilham o mesmo delírio ou sistema delirante e apoiam-se reciprocamente nesta crença;

  • Têm uma relação invulgarmente próxima;

  • Existe evidência temporal ou contextual que indica que o delírio foi induzido no indivíduo passivo ao contactar com o parceiro ativo.

Assim, antes de nos lançarmos ao cerne deste texto, importa apontar alguma estatística relativa aos hábitos religiosos da nossa civilização. Como se constata no seguinte mapa, os países com maior percentagem de pessoas não-religiosas situa-se na “faixa de países desenvolvidos”. Estaria Nietzsche certo ao anunciar-nos a morte de Deus? Pergunta que ia assolar os mass media com a publicação do vol.87, no.14 da Time, em 1966, sob o mote “Is God dead?”.



The World's "Newest Major Religion: No Religion", NG, abril 2016

De facto, como se vem a constatar numa das publicações da National Geographic de abril de 2016: “Atheism is also tied to education, measured by academic achievement (atheists in many places tend to have college degrees) or general knowledge of the panoply of beliefs around the world (hence theories that Internet access spurs atheism).”.


Assim, seguindo a mais recente definição de saúde mental pela OMS (“a state of well-being in which the individual realizes his or her own abilities, can cope with the normal stresses of life, can work productively and fruitfully, and is able to make a contribution to his or her community”), dá-nos uma ideia da capacidade individual de auto-superação e de adaptação ao meio no qual o indivíduo se insere. Desta forma, poderemos afirmar que o tão proclamado niilismo moderno – emparelhado ao sofrimento que se lhe segue – foi o motor da descrença na civilização desmoralizada?


“(...) Le nihilisme signifiait tout à l’heure: dépréciation, négation de la vie au nom des valeurs supérieures, remplacement par des valeurs humaines – trop humaines (la morale remplace la religion; l’utilité, le progrès, l’histoire elle-même remplacent les valeurs divines). (...)”

Comment sortir du nihilisme, par Gilles Deleuze



Vejamos, então, a noção de religião (a qual inclui, necessariamente, a fé enquanto motor para religare, aqui conceptualizada por Clifford Geetz como “(i) a system of symbols which acts to (ii) establish powerful, pervasive, and long-lasting moods and motivations in men by (iii) formulating conceptions of a general order of existence and (iv) clothing these conceptions with such an aura of factuality that (v) the moods and motivations seem uniquely realistic”. Vê-se, então, a emancipação da religião, talvez depois da morte de Deus, como uma melhoria na saúde mental da civilização desenvolvida (exatamente pelo avanço civilizacional que se lhe associa). Se olharmos a necessidade de um Deus, de uma religião, como Nietzsche nos faz chegar em A Gaia Ciência:


“quanto menos alguém sabe comandar, mais violentamente aspira a alguém que ordene, que comande com severidade, a um deus, um príncipe, um Estado, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência de partido. (...) o budismo e o cristianismo poderiam muito bem ter sua origem (...) num enorme acesso de doença da vontade.”

Torna-se bastante clara a crítica religiosa, especificamente quando o autor a vinca ao chamar de doentes todos os que são fracos de espírito e, consequentemente, procuram uma religião. No decorrer deste livro, afirma ainda que a busca por uma identidade transcendente é tanta que o indivíduo se deixa hipnotizar intelectual e sensitivamente, apenas para que a sua fé se possa hipertrofiar. Quando o Insensato entra em cena – em busca de um Deus numa rua repleta de não-crentes –, apercebe-se de que “Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos!”.


Parece mesmo que tinha razão, mesmo sendo antes do seu tempo, como ele próprio afirma... sinto uma estranha rebeldia ao chamar-lhe profeta!



Capa da "Time" de abril de 1966


Contudo, assumo-lhe um erro grande ao considerar que esta superação, cunhada no termo nietzschiano de super-homem, se dá somente num grupo reduzido de homens, grupo esse que ele chamaria de aristocracia, com intuito de governar os fracos de espírito. Aqui, quem não teve fé – na humanidade – foi Nietzsche ao pensar que muitos de nós ainda estaríamos presos a uma anatomia religiosa de doutrinas, mitos, ensinamentos éticos, rituais e demais instituições sociais. Ter-lhe-ia feito bem não achar de menos os seus conterrâneos, quando um deles – K.Marx – critica de igual forma dura, mesmo que de um prisma ligeiramente diferente, a religião.


Agora peço-vos que sigam o meu raciocínio. Partindo de uma ótica puramente nietzschiana (sucintamente apresentada), na qual a religião, ou a vontade de uma, é considerada uma doença, teríamos de dizer que é uma patologia coletiva.


Ora, como se sabe, as doenças pressupõem um desvio à normalidade estatística (não preconceituosa) e, especificamente em saúde mental, um sofrimento e incapacidade subjetivos. Portanto, para não cair em confusões terminológicas, apesar de a doença apresentada por Nietzsche não corresponder ao conceito médico atual, mas mais a um recurso literário-filosófico para enaltecer a loucura da religião, podemos sempre fazer um exercício interessante:

Caso esta “doença”, cada vez mais evidente nas sociedades com maior acesso ao conhecimento e a mecanismos que permitem a afirmação individual, onde se observa uma diminuição constante da população crente (aliado à diminuição do poder das instituições religiosas na sociedade), seja verdadeira, só o poderia ser em coletividade (claro que já se provou que não corresponde ao conceito médico de doença mental – que subentende um grau de incapacidade e/ou sofrimento subjetivos). Contudo, poderia afirmar que a crença num Deus ou numa religião é uma fantasia. Aliás, muitos filósofos teológicos admitem, após fracassos tomistas e cartesianos, que a existência de Deus não é matéria cognoscível... estão basicamente a dizer-nos que se encontra no âmbito de uma psicologia esotérica, no tal âmbito do fantástico. Daí a entrada da corrente fideísta, numa tentativa camoniana de salvar, dê por onde der, a discussão religiosa. (Atenção que aqui não se faz uma análise à ética cristã e ao seu impacto no desenvolvimento civilizacional, mas somente à crença em entidades superiores, exatamente aquela que move massas aos confessionários).


Voltando à questão do coletivo, não vos parece que, a ser uma doença, se enquadraria perfeitamente no distúrbio delirante partilhado, visto que um delírio não é mais do que um “Estado de alteração da consciência com desorientação, perda da coerência de pensamento, eventualmente acompanhado de alucinações.”. Quase que não é preciso explicar o enquadramento de um crente num delírio, mas vejamos:

  • Desorientação parece-me ser o primeiro substrato de um crente, este sentir-se-á desamparado antes de iniciar a sua busca religiosa, vejamos até o exemplo de Siddhartha onde observamos a necessidade de um modo de viver calmo e que lhe providencie a mais serena das vidas (caso não tenha sido vítima do delírio de outro indivíduo, sendo aí indiscernível a sua origem). Afinal, a religião não é a voz que nos orienta a vida?


  • A perda de coerência de pensamento dá-se logo quando se tenta afirmar um deus ou outra qualquer entidade superior. Há um claro salto lógico entre a existência mundana e uma outra divina. Por muito que eu não consiga fazer esse salto, talvez pela falta de fé, considera-se evidente a necessidade de um gap de raciocínio para falar de deus, aniquilando toda a lógica que sustenta um pensamento coerente.


  • Eventuais alucinações são o expoente máximo da religião cristã, que aceita milagres; estes, a acontecer perante multidões, não serão mais do que alucinações coletivas.


Então, à luz da definição inicial de folie à deux, quem contraria o facto de ser um conjunto de pessoas que apoia a crença uns dos outros, com uma proximidade especial onde partilham vários rituais (no caso do cristianismo, o batizado como forma de pertencer à irmandade) e de se tratar de um contágio social, uma vez que é no contacto com pessoas já inseridas na comunidade religiosa que se inicia a jornada de fé?


Posto isto, talvez Nietzsche, com os conhecimentos atuais, pudesse utilizar o conceito de distúrbio delirante partilhado para explicar a manutenção de uma crença aliada à sua fenomenal constatação de que os mais fracos são, necessariamente, aqueles que procuram um “tu deves”. Possivelmente teria olhado a sua sociedade de um outro prisma e de que a salvação da mesma não passaria pelo aparecimento de super-homens, de fortes, para guiar os fracos. Ao invés, bastaria a educação (e nunca, repito, nunca uma aristocracia) para inverter a pirâmide religiosa.


Dois apontamentos finais:

  • Não se pretende mais do que uma avaliação nietzschiana da religiosidade;

  • Não se aspira a um discurso de ódio ou de fobia, como muitos papas o fizeram (basta-nos o exemplo do discurso do Papa Urbano II em Clermont-Ferrand, para os mais curiosos)



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