A Lei da Descriminalização demonstra portanto uma das suas principais falhas: é o fruto de uma perspectiva desatualizada do que é verdadeiramente a canábis
Crónica Aspas Aspas de Guilherme Machado
Foi no começo do milénio, nos primeiros tempos dos anos 2000 que foi passada na Assembleia República uma nova e quase subversiva lei - a Lei da Descriminalização. Subversiva, claro, quando comparada com uma predominante narrativa internacional de uma verdadeira guerra contra as drogas. E não só contra as drogas, mas contra todos os envolvidos: consumidores, traficantes a as suas comunidades. A Lei da Descriminalização das drogas encontra um compromisso entre uma perspetiva que tem claramente em conta a desigualdade social e o facto de que o combate contra as drogas cria pressões e decadência em comunidades já alienadas e excluídas do funcionamento normal da sociedade, e outra perspectiva de tendência conservadora e bélica - uma epopeia à Reagan contra este mal que corrompe a sociedade. Não a simpatia da Nancy Reagan, mas sim os helicópteros e fuzis automáticos do Ronald. A lei distingue os consumidores dos traficantes, e coloca o problema da droga numa ótica de ameaça à saúde pública, levando a que Portugal tenha criado relevantes e impressionantes estruturas de registo e apoio a consumidores toxicodependentes, não com o objetivo de punir, mas de tratar.
O ponto fulcral da questão das drogas em Portugal direciona-se então para outro assunto. Passados mais de vinte anos desta revolucionária lei, que tornou a pequena nação mediterrânica num exemplo mundial de política de estupefacientes, quais são os principais problemas presentes na ação portuguesa contra a problemática da toxicodependência? Para que possa ser feita uma coerente análise, é necessário compreender a natureza do consumo de drogas em Portugal, e acima de tudo, classificá-las, pois consumir heroína não é o mesmo que consumir canábis. O uso de drogas pesadas em Portugal (como, por exemplo, cocaína) diminuiu substancialmente nas últimas duas décadas, em parte devido à existência daquilo que são órgãos relativamente funcionais de apoio a toxicodependentes, mas também a um combate à pobreza (por mais que se mantenha a realidade dos bairros periféricos de renda socioeconómica baixa). Mas o uso de drogas leves, neste caso, a erva e haxixe mantém-se algo comum e porventura, mais prolífero. A canábis é consumida em escolas e faculdades, casas familiares, ruas, festas e em varandas metropolitanas. Uma autêntica droga que subverte o conceito de classe social - a erva pertence à sociedade, e é consumida como uma substância comum, como o cigarro entre pausas e a taça de vinho ao jantar. Longe de ignorar os casos típicos de consumo exagerado e até nefasto destas drogas leves - o famigerado adolescente consumidor, ansioso e até deprimido - a canábis não é destrutiva como os opiáceos, e estabelece-se como uma substância que em termos de frequência e presença de consumo, assim como em perigos para a saúde, se iguala ao tabaco e ao álcool. É, portanto, inusitado que o consumidor de erva seja tratado e observado pelas autoridades de saúde pública como um toxicodependente em todos os casos. É necessário que não sejamos levados por uma visão leviana da canábis - existe um vício em erva, e existem viciados - mas existe um vício em tabaco, e existem viciados. Assim como existe alcoolismo e alcoólicos.
Portanto, a verdadeira questão surge quando se consegue compreender que o exercício da lei da descriminalização na sociedade portuguesa, quando esta abrange a canábis, não leva a um cenário de salvação do pudor e sanidade pública da sociedade, mas sim a um verdadeiro jogo de polícias armados com contraordenações e de ladrões armados com mortalhas. Não existe uma justificação válida para que consumidores de canábis sejam processados pelas estruturas vigentes de controlo de estupefacientes de uma maneira tão frígida e impessoal como a que predomina atualmente no país. Não existe uma maneira racional e não tendenciosa quando se discute o processamento de consumidores de canábis - é necessário que a própria abordagem cultural a esta substância seja mudada. A Lei da Descriminalização demonstra portanto uma das suas principais falhas: é o fruto de uma perspectiva desatualizada do que é verdadeiramente a canábis. A verdade é que a perspectiva presente em Portugal e na Europa quanto à canábis liberalizou-se de tal maneira que os próprios agentes da polícia, como indivíduos circunscritos a uma instituição, vivem com a inerente contradição da abordagem da lei face à canábis, levando a que toda a política de drogas leves se torne fútil devido à própria perda de sensibilidade e estigma de todos os envolvidos - consumidores, agentes de segurança e cidadãos. A abordagem da legislação à erva encontra-se num ponto frágil que se contradiz a si mesmo, entre a proibição total da droga e a legalização completa. E em todas as situações encontraremos as suas contradições e possíveis falhas, pelo facto de se tratar de uma substância com os seus benefícios e prejuízos. Porém, numa das situações apenas os simples consumidores de uma droga leve não serão processados como criminosos: a legalização do consumo e plantio de canábis.
Ao discutir-se uma das falhas mais crassas da lei de estupefacientes em Portugal, encontra-se uma situação que deve ser analisada com maior profundidade. A lei implica que serão as autoridades de proteção da vida pública as responsáveis pelo processamento de consumidores, mas o que é várias vezes ignorado são os próprios métodos utilizados para encontrar estes consumidores ou toxicodependentes. Sejam as operações de revista em certos bairros ou a típica emboscada a consumidores num lugar público, o meio de ação através do qual são encontrados consumidores é inerentemente punitivo e violento. Se o objetivo da descriminalização consiste claramente numa mudança do foco dos esforços das autoridades para a saúde pública, a utilização de forças policiais não é o caminho correto a seguir. A verdade é que o primeiro contacto do consumidor de drogas com as instituições de apoio é a polícia. Quando são as forças policiais a ferramenta utilizada para inserir toxicodependentes no sistema de tratamento, o resultado não será uma espontânea e benéfica campanha de saúde pública, mas sim uma alienação e subjugação cada vez maior dos cidadãos e especialmente das comunidades de renda mais baixa aos aparelhos do Estado. O motivo pelo qual isto acontece é simples: a polícia é um órgão cujos métodos, objetivos e a sua conduta moral e institucional baseiam-se essencialmente numa perspectiva punitiva. A lei da descriminalização das drogas possui uma filosofia de tratamento, recuperação e reformulação do indivíduo sujeito à toxicodependência, de modo a poder existir novamente como um membro pleno da sociedade. Contudo, as próprias ferramentas institucionais que aplicam as leis, mesmo que não sejam punitivas, levam a uma ineficácia avassaladora desta conduta de ação. Isto leva-nos, portanto, a inferir que uma filosofia humanista face à problemática da toxicodependência é incompatível com instituições que existem para punir. O que o sistema de descriminalização das drogas vigente no país em Portugal faz consiste em perseguir e processar toxicodependentes - estratégia que em tempos idos e atuais já se demonstrou ineficaz - para que de uma maneira milagrosa estes escolham inserir-se num sistema de tratamento.
É necessário que no debate da legalização das drogas não seja esquecido que o problema da toxicodependência não consiste num caso isolado na sociedade, mas sim num problema que em grande parte é resultado de relações socioeconómicas desiguais e injustas na sociedade. O vício em drogas pode acontecer a qualquer indivíduo, mas por alguma razão, na sociedade atual, a toxicodependência é uma realidade de maior presença em zonas de renda socioeconómica baixa, o que nos leva a inferir que muito do que leva a esta situação consiste numa enorme exclusão e alienação económica de avultadas percentagens da população. Não devemos portanto, deleitar-nos com os resultados da lei da descriminalização em Portugal, que, embora positivos, como demonstra a estatística, estão aquém do que é realmente necessário na questão da toxicodependência em Portugal. Uma verdadeira política de saúde pública atualizada e livre de preconceitos culturais e sociais, que substitua os métodos de vigilância e policiamento por clínicas públicas de reabilitação, a intervenção incisiva de autarquias em bairros e zonas de maior pobreza para ajudar e, acima de tudo, assegurar o tratamento de todos os cidadãos, consumidores ou não, como seres humanos e não como criminosos.
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