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“No século XVIII todos peticionavam, desde o aristocrata ao escravo”

Em entrevista ao Crónico, o historiador Miguel Dantas da Cruz explica a história das petições públicas: desde as petições individualistas e corporativas que vigoraram até ao século XVIII, à transformação das mesmas em instrumentos de mass politics a partir das revoluções liberais

Entrevista por João Moreira da Silva

The Humble Petition of Jock of Bread, Scotland (1648)

Ao longo dos últimos meses, temos assistido a uma explosão de petições públicas online: desde a petição que exigia uma nova versão do filme Soul em língua portuguesa; outra contra o apagamento dos brasões da Praça do Império, em Belém; a petição que pedia o afastamento do Juiz Ivo Rosa; ou, mais recentemente, uma petição que exige a criação de um hospital público veterinário.


Todos estes documentos, com milhares de assinaturas e ávidos defensores das mais diversas causas, geram intensas discussões nas redes sociais. Enquanto gastamos o nosso latim a debater o conteúdo destas petições, há perguntas que nos passam ao lado: o que é uma petição? Qual é a sua origem? E o seu poder efetivo?


De forma a compreender a história deste fenómeno - a história das petições públicas -, o Crónico conversou com o historiador Miguel Dantas da Cruz, investigador no Instituto de Ciências Sociais (Universidade de Lisboa) e doutorado em História Moderna, que tem vindo a investigar o mundo das petições e os movimentos peticionários, em particular na época das revoluções liberais. Recentemente, publicou o artigo Petições: o vox populi durante a Revolução Liberal Portuguesa, 1820-1823 no Jornal Público.


Escreveu no Público que “as petições foram, durante milénios, e em diversas partes do mundo, a forma mais vulgar de comunicar com qualquer tipo de autoridade”, referindo como exemplo todo o sistema de comunicação do Império Português, que dependia de iniciativa peticionária.” Hoje, as petições são percecionadas como meios que servem para dar voz ao povo - uma expressão da verdadeira vontade popular, face a uma classe política isolada na torre de marfim. Sempre tiveram esta conotação?


De uma forma geral, nem sempre tiveram essa conotação. Há um grande momento de mudança nas formas de peticionar: o tempo das revoluções liberais. As petições eram tendencialmente individuais até ao final do Antigo Regime (até ao fim do século XVIII). Por exemplo, em 1450, se alguém tivesse um problema com um vizinho por causa de uma situação do dia-a-dia, apresentava uma petição às autoridades judiciais e, em última instância, ao Rei, para resolver o problema a seu favor. Por isso, o cariz da petição era tendencialmente individual. Existiam também petições coletivas, muito ligadas ao entendimento corporativo da sociedade. As pessoas identificavam-se como parte de um grupo, como eram os casos das corporações religiosas, das corporações de ofícios, da nobreza, dos militares, de artesãos, etc., e os privilégios aplicavam-se a esse grupo e não especificamente a uma pessoa. Assim, era comum que as corporações de ofícios apresentassem petições em nome dos artesãos de um determinado ofício nas Cortes portuguesas (a reunião magna onde se reunia o povo, o clero e a nobreza). Curiosamente, nessas Cortes não se admitiam petições individuais. Por tudo isto, é difícil dar uma resposta precisa à pergunta que me faz - há uma grande variabilidade.


Quando chegamos às revoluções liberais (final do século XVIII e princípio do século XIX), sobretudo a partir da Revolução Francesa, as petições começam gradualmente a converter-se em objetos de pressão política, quase como as identificamos hoje. Paralelamente, formam-se movimentos peticionários - uma movimentação social gerada para mobilizar pessoas em torno de objetivo, que era avançado por via de uma petição. Estas petições coletivas já não se inseriam dentro daquele modelo corporativo, uma vez que podiam ser assinadas por um trabalhador fabril, um médico e um advogado, por exemplo.


Também em Portugal, estas “petições de massas” começaram a mobilizar cada vez mais pessoas. Lembre-se que este foi um período (século XIX) onde se discutiam noções de representação, questionando-se de que forma é que devem as pessoas ser representadas nos órgãos de poder político. O caso português é até muito significativo, na medida em que a Revolução Liberal de 1820 foi acompanhada por um extraordinário movimento peticionário. Foi o sociólogo americano Charles Tilly que propôs uma grelha interpretativa para as mudanças nas formas de contestação social do início do século XIX, que nos tem ajudado a explicar a transformação dos sistemas peticionários, do individual e submisso para o coletivo e exigente.


Quais foram os fatores que levaram a esta viragem da conceção individual da petição no século XVIII, para a visão coletiva e massificada do século XIX?


Antes desta viragem, era muito raro - em alguns países, era mesmo proibido - que alguém dissesse que estava a falar em nome de outras pessoas, a falar em nome do Povo. As pessoas apenas podiam falar em nome dela próprias, ou da corporação de que faziam parte. Por outro lado, as petições, mesmo as coletivas, eram encaminhadas por um circuito que, apesar de não ser secreto, não tinha exposição pública, não tinha cobertura jornalística. Corria pelos tribunais, e em princípio apenas as partes interessadas tinham acesso a (ou interesse por) esta informação.


As coisas começam a mudar quando muitas petições deixaram de seguir essa via reservada, quando adquiriram exposição pública, tornando-se poderosas como instrumento de ação política coletiva, no sentido atual do termo. Chegamos assim à época da mass politics, na qual as pessoas dialogam com o espaço público de uma forma totalmente diferente. Em Inglaterra, no início do século XIX, surgem petições que atingem dois ou três milhões de assinaturas, como foi o caso da petição cartista (1939), um movimento em torno do alargamento dos direitos políticos dos trabalhadores ingleses.


Como é que se reuniam as assinaturas destes milhões de pessoas em Inglaterra?


Este fenómeno está diretamente associado com a consagração do direito a reunião pública e direito a associação no início do século XIX, tanto em Inglaterra como em muitos outros países. Até essa época, o exercício destes direitos gerava sempre uma grande desconfiança entre as elites e não há dúvida de que foi a generalização desses direitos que contribuiu muito para a proliferação das petições públicas. Há que salientar que, em Inglaterra, já havia uma tradição anterior incomparável de petições públicas. Alguns autores avançaram até a ideia de que o espaço público do país foi criado pelas petições coletivas impressas durante e após a guerra civil inglesa. No caso do movimento cartista do século XIX, existia inclusivamente uma ritualização do procedimento de entrega das petições no Parlamento Britânico - e podemos imaginar a quantidade de papel necessário para reunir dois milhões de assinaturas! Mas este ritual tinha um significado: conquistar a opinião pública, algo diretamente associado com esta nova função das petições.


E qual era a reação dos governos e da classe política a estes grandes movimentos de massas?


Mesmo antes desta viragem, ainda no Antigo Regime, muitos governos temiam o papel desestabilizador das petições, como já referi – sentiam que as petições poderiam converter-se naquilo que já foi chamado power keg (barril de pólvora) – uma vez que havia sempre o risco de provocarem uma comoção, caso as ambições contidas nas petições fossem afrontadas. Mas, de uma forma geral, a administração lidava bem com as petições individuais, mais submissas e com objetivos mais circunscritos. No fundo, era um processo disciplinado e normalmente seguro de ouvir as queixas das pessoas. Contudo, durante e depois das revoluções liberais, assistimos a uma avalanche destes documentos, profundamente entrelaçados com as grandes questões da praça pública, o que os tornava naturalmente mais perigosos. As petições coletivas dizem estar a falar em nome da população eventualmente marginalizada, ou contra um determinado imposto, por exemplo. E os governos sentem mais dificuldades em lidar com elas e com a pressão que elas provocam, reagindo por vezes com hostilidade.


No período de transição para o liberalismo, vemos parlamentos completamente atolados com petições, com os deputados incapazes de dar resposta a todo o tipo de pedidos, desde os mais problemáticos aos mais banais. Em França, esta “enxurrada peticionária” gerou tentativas de restringir o direito à petição aos cidadãos ativos, ou seja, aos homens com direito de voto. Em Portugal, Borges Carneiro, famoso deputado às Cortes Vintistas, chegou a afirmar que não se devia aceitar petições que não viessem assinadas. Portanto, percebe-se que estes primeiros governantes liberais têm dificuldade em lidar com o tema e com a nova carga de trabalho vinda das petições públicas, procurando ultrapassá-la através de regulamentação.


Referiu que França restringiu o direito à petição pública a cidadãos com poder de voto. Estas petições vinham de pessoas de todos os meios sociais ou era um movimento dominado por grupos mais privilegiados?


A parte mais interessante das petições é que eram extremamente “inclusivas”, toda a gente podia peticionar - inclusivamente escravos, ainda que dentro daquele entendimento tradicional. Como disse, a petição era individual e quando coletiva era de natureza corporativa. Só no século XIX é que as petições coletivas começam a ir para além da classe social, do grupo a que se pertence, tornando-se mais transversais.


De que forma é que os escravos participavam nestas petições?


Um colega meu deparou-se com uma petição enviada por escravos às Cortes Liberais Portuguesas de 1821-1823. Na teoria, nesta altura já não havia escravatura em Portugal continental (ainda que existissem escravos por via de um conjunto de exceções), por isso provavelmente tratava-se de um grupo de pessoas que tinha sido apanhado pela Revolução quando estava em trânsito, ou que escrevia diretamente do Brasil ou de África. Na verdade, é bom lembrar que os escravos já peticionavam ainda antes das revoluções liberais, e por diversas razões, nomeadamente por se sentirem injustiçados.


Todos peticionavam, desde o aristocrata que se queixava por ver as suas rendas senhoriais engolidas pela inflação, ao escravo que denunciava o seu senhor por estar a ser maltratado. Aproveito para recordar aqui um caso paradigmático no Sacro-Império Germânico, no início do século XVII. O Imperador Rodolfo II escreveu para o conselho municipal cidade de Frankfurt, a pedir armeiros qualificados para a campanha contra o Império Otomano. Não sei se a sua iniciativa teve sucesso, mas o que é interessante é que a sua petição foi arquivada no mesmo volume do ano de 1601 das Ratssupplikationen (suplicações ao concelho) ao lado de uma modestíssima petição de um carpinteiro que estava na prisão doente e que pedia misericórdia.


Tendo em conta este grande alcance nas petições públicas, desde os seus primórdios do Antigo Regime, às Revoluções Liberais e até à atualidade, podemos considerar que estas foram motores de grandes reformas dos sistemas políticos europeus, que levaram à aproximação do povo ao poder político?


Eu acredito que vencem pelo desgaste. Conheço casos concretos em que as petições surtiram efeito. Num livro que estou a organizar, sobre petições no mundo atlântico, um jovem historiador americano tentou sondar o impacto das petições no desenho de algumas constituições dos EUA. O argumento geral da historiografia, neste caso, é de que as constituições dos diferentes Estados - antigas colónias britânicas - são tendencialmente mais democráticas, fruto de um impulso de base, do que a Constituição federal. Diz-se que a Constituição federal norte-americana foi criada por um impulso vindo de cima, um impulso elitista que procurava disciplinar os excessos democráticos do constitucionalismo dos estados. O que ele defende é que ambas as constituições - tanto as estatais, como a própria constituição federal – foram fruto de impulsos que vinham da base, foram especialmente influenciadas por pessoas que pediam proteção contra os ataques estrageiros.


Ao longo dos últimos anos, dinamizou-se o fenómeno das petições online, tendo atingido o seu auge na altura da pandemia. É possível estabelecer um paralelismo entre estas novas petições - a nível de conteúdo, das suas reivindicações - com as petições das Revoluções Liberais? Ou estamos perante uma nova forma de petições em massa, com uma dinâmica totalmente nova?


Eu tenho muitas reservas em utilizar a história como um exemplo. É verdade que há dinâmicas sociais que se repetem, mas há certamente formas de pensar e estruturar a petição que mudaram. A recolha de assinaturas para uma petição nos dias hoje leva em conta uma população com níveis de educação completamente diferentes, e há que saber cativar essa população para a causa que se quer defender. Há 200 anos, essa lógica não se observava da mesma maneira, a apresentação da própria petição era diferente e ajustada ao respetivo contexto cultural não democrático.


No entanto, eu diria que se observam semelhanças. Parece-me que as questões da injustiça e da desigualdade se repetem. Trata-se de desigualdades muito diferente, claro: hoje, as petições ligam-se sobretudo aos direitos sociais e económicos; há 150 ou 200 anos era a desigualdade civil e política que mais emergia no discurso peticionário. Existe, portanto, alguma continuidade que, em todo o caso, não convém exagerar.


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