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Não é um Cachimbo, é Arte ao Domingo

  • Foto do escritor: Crónico.
    Crónico.
  • 27 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura

A Guerra Guardada, Museu do Aljube


de Joana Soares


Cartaz da Exposição, Museu do Aljube


Caros leitores, para a segunda crónica desta rubrica e dado o contexto atual em que nos encontramos, no mês de março, sugerimos que subam ao quarto piso do Museu do Aljube Resistência e Liberdade (com tantas outras exposições temporárias e permanentes pelo caminho) e revisitem as memórias fotográficas e as coleções privadas de “homens que em tempos foram soldados (...) de uma guerra mandada combater pela ditadura”, recolhidas através de entrevistas numa investigação etnográfica do ICS-Lisboa.



Depois de entrarmos, os nossos olhos percorrem a sala até se fixarem num mapa na parede, de onde saem fios coloridos de Portugal para Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Este mapa reconstrói 44 trajetórias de antigos soldados e os registos fotográficos da jornada de cada um, desde o treino militar em Portugal até às operações em que combateram. Mais do que reconstruir trajetórias, tratou-se de trazer a público registos de fotografias que, até então, tinham sido conservadas “em álbuns ou em caixas, analógicas ou digitalizadas” e “mostradas em círculos restritos ou partilhadas nas redes sociais” - para evitar que se perdessem ou que se apagassem como tantas outras, pela mão da censura. Porque a memória é curta e, volta e meia, precisamos de ser relembrados do caminho percorrido para que a história e os seus erros não se repitam.



A sensação com que ficamos é que tantos soldados e trajetórias facilmente se transformam em números. Só que detrás de cada número e de cada farda, há histórias de homens que foram mais do que soldados.


Nas fotografias com audiodescrição, através de um QR code, podemos escutar algumas dessas histórias mais de perto. Uma delas é a de um soldado que “adotou” um menino africano chamado Vitor, em Moçambique, que vinha de uma família ligada à prostituição e que encontrou, naquele soldado, um pai que lhe dava de comer na messe, que lhe construiu uma cama e inclusivamente lhe fez uma farda. Muitos destes soldados adotavam crianças “como se fossem filhos”, que depois seguiam o seu caminho, deixando um rasto de laços desfeitos.



Há ainda histórias inéditas de quem tivesse sido perseguido em Angola por inspetores das Nações Unidas, por ter fotografado dois aviões Dakota da força aérea portuguesa que eram suspeitos de espalhar químicos e cuja “prova do crime” não estaria hoje no museu, se não tivesse sido religiosamente guardada por este soldado.



Ao fundo da sala, espera-nos uma poltrona alaranjada, um candeeiro pintado à mão e um álbum de fotografias com capa de veludo.



Enquanto folheamos e vemos confortavelmente televisão, numa simulação do ambiente em que muitos assistiam à guerra colonial, há também quem olhe para nós. Trata-se da obra Maps of complicities, do artista Daniel Barroca, onde vários soldados sentados à mesa numa fotografia impressa a jato de tinta, cruzam olhares num mapa de cumplicidades feito de rasgões a partir dos olhos de cada um.


O elemento que mais me fascinou nesta exposição foi provavelmente a “Caserna da Guerra Guardada”, uma instalação onde nos podemos perder e encontrar, no conjunto de reproduções e fragmentos de jornais da época, que retratavam o quotidiano daqueles soldados.



Nesta caserna encontramos secções de piadas e colagens (hoje altamente machistas), homenagens a soldados que partiram cedo demais, artigos sobre festas e aniversários, notícias sobre a guerra, fotografias de operações militares, de paisagens invejáveis, de civis, anúncios de cerveja local e registos do dia-a-dia que escaparam ao lápis azul do regime, guardados como provas de vida.


No mesmo espaço, faz-se um convite à participação dos visitantes numa parede colaborativa chamada “O que se vê e o que não deve ser visto nesta parede da Caserna?”. Para participar basta pegar na fita adesiva, selecionar uma das fotografias ou recortes à mão de semear, e colá-la na parede para recordar ou partilhar nas redes sociais com o hashtag #guerraguardada. Porque a história diz respeito a todos e o passado está sempre à espreita, cabe-nos ter uma palavra a dizer no presente.



À saída e à entrada, somos convidados a deixar uma mensagem sobre a exposição num caderno branco com argolas pretas, pousado numa mesa de madeira. A tentação e a curiosidade falam mais alto e rapidamente damos por nós a folhear em busca de histórias de outras pessoas que tenham algo mais a acrescentar do que nós.



Sem perceber bem como, fui dar com uma caligrafia que me prendeu inesperadamente a atenção, escrita a tinta preta, no dia 3 de janeiro, e que resume toda a viagem contida nesta exposição. Passo a citar: “Após 50 anos alguém se lembrou de fazer esta pequena amostra do que foi uma grande perda para a minha juventude. Obrigado por se terem lembrado de nós.” (Carlos N.). Se terminar a exposição com testemunhos destes não vale uma ida ao museu, então não sei o que valerá.


“A Guerra Guardada – Fotografias de Soldados Portugueses em Angola, Guiné e Moçambique (1961-74)”, conta com a curadoria de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte, que prepararam uma programação cultural com mais duas sessões até ao final do mês: “Cronologias da guerra: conversa à volta de uma peça em exposição”, com Rui Lopes e Mariana Carneiro (4 de março, às 16h), e “Visita Orientada com Aniceto Afonso” (16 de março, às 16h). As inscrições são obrigatórias e podem ser feitas para o seguinte endereço de e-mail: inscricoes@museudoaljube.pt. A entrada é gratuita aos domingos e feriados, até às 14h para os residentes no concelho de Lisboa (o valor do bilhete é 3€ para residentes noutros concelhos, havendo 50% de desconto para algumas condições descritas no site). A exposição pode ser visitada até ao dia 20 de março de 2022, no Museu do Aljube Resistência e Liberdade.


Isto não é um cachimbo, é arte ao domingo!

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