Se há coisa que se tornou evidente para mim durante a pandemia foi a consciência do poder dos concertos ao vivo para me manter sã e me sentir viva.
de Joana Soares
Concerto do Filipe Karlsson, no Festival Micro Clima (autoria de Velhote do Carmo)
Em abril de 2020, a iniciativa “Chamadas de Embalar” levava uma espécie de serenatas, telefonemas encomendados, a pessoas de quem gostávamos e que estavam longe, enquanto nos dava a conhecer jovens músicos portugueses que, do outro lado da linha, transmitiam uma mensagem e cantavam uma canção.
Na altura, encomendei uma chamada para uma amiga com quem tinha partilhado um concerto meses antes (Chet Faker, no Coliseu dos Recreios), porque verdadeiras relações e amizades passam pela prova de fogo dos concertos ao vivo. Foi assim que fiquei a conhecer a Marinho, que, à falta de Capitão Fausto, encantou a minha amiga Maria João Sá com a “Blackbird” dos Beatles, que ela tinha a certeza de que os Capitão Fausto gostariam também. Confesso que ouvir as palavras que escrevi em tom de brincadeira ditas assim pela Marinho, num momento que ela tão gentilmente guardou para a posteridade, dissiparam qualquer ansiedade e distância imposta pelo confinamento.
Nesse mesmo verão, voltei a ouvir a Marinho no Time Out Market e, no ano seguinte, estava na primeira fila para mais um concerto, desta vez, no festival Micro Clima, na SMUP (Sociedade Musical União Paredense), uma iniciativa criada em 2017, por um grupo de amigos que ambicionava dinamizar culturalmente a zona da Parede e que acabou por provar que é possível dar palco à música, cultura e arte, nos arredores dos centros urbanos.
No final de fevereiro de 2022, não resisti a ir ao Teatro da Garagem para uma Street Mission Record Evening, que uniu quatro amigos da mesma editora discográfica num cenário verdadeiramente acolhedor. Marinho, Monday, Time for T e Cavalo 55 trouxeram o estúdio para o palco, cantaram músicas uns dos outros, num jogo das cadeiras em que permaneciam os instrumentos e reinava a versatilidade de grandes músicos, cheios de talento.
A festa culminou numa canção a cappella, com estas quatro vozes de pé, unidas em sintonia que, por breves instantes, foi capaz de apaziguar uma semana tão carregada de tensões sobre a guerra na Ucrânia. Os dias seguintes foram passados na alegria de descobrir novas canções de todos aqueles artistas e repeti-las vezes sem conta, , numa adição saudável que só a música é capaz de perpetuar.
O meu concerto mais recente, sem máscaras, sem cadeiras e sem grandes restrições, foi um regresso à SMUP e ao conceito de “festival”. No dia 1 e 2 de abril, o Micro Clima abriu novamente as portas da casa onde se respira música ao pé do mar, num festival a sério, com um line up invejável (Tito Paris, Narciso, Alcool Club e David Moreira DJ Set, no dia 1; Monday, Bone Slim, Filipe Karlsson e King Kami DJ Set, no dia 2). Entre copos de vinho do Porto, empanadas e tartes de chocolate vegan, percorremos o primeiro andar e o rés-do-chão. A história do edifício, os objetos vintage, as mesas de bilhar, as instalações artísticas e o ambiente de quem sorri e pede para nos tirar fotografias com máquinas analógicas, por gostar do nosso ar, foram a lufada de ar fresco de uma noite que estava longe de acabar.
Esta crónica não faria sentido sem destacar a importância de lugares como a SMUP, que têm dado voz a uma nova geração de artistas emergentes e que continuam a trazer-nos referências arrojadas, tão necessárias ao panorama musical português. Atrevo-me a dizer que talvez tenham um reconhecimento (merecido) mais cedo lá fora do que cá dentro, uma vez que tendemos a adormecer para tantas formas de arte subvalorizadas em contexto nacional até que alguém nos abra os olhos para o que sempre esteve à nossa frente, mesmo que por breves serões.
Voltando ao Micro Clima: depois do concerto no Teatro da Garagem, a vontade de voltar a ouvir o timbre calmo, envolvente e intimista da Catarina Falcão (Monday), acompanhada na guitarra pelo Simone (Cavalo 55), não era muita, não era pouca, era mesmo bastante. Além dos êxitos “little fish” e “convictions”, o momento mais alto da atuação foi aquele em que a Catarina fez das tripas coração para nos arrebatar com uma versão de “Unlearn You” da Joy Crookes, sobre o trauma de alguém que foi abusado sexualmente. À semelhança do que aconteceu no Teatro da Garagem, foi um momento único e irrepetível, carregado de sentimento e do respeito, que uma canção assim nos pede que tenhamos.
A estrela da noite foi sem dúvida o, há muito aguardado, Filipe Karlsson. Desde outubro de 2021 que ansiava por este momento. Depois de uma tentativa falhada em ouvi-lo na Casa do Capitão e de um encontro inesperado numa sessão de DJ set na cervejaria Musa, fui vivendo nas canções do Filipe em largas horas de Spotify, que me devolveram alguma sanidade mental e momentos de muita alegria durante estes dois anos ansiogénicos de pandemia. Na noite de 2 de abril, foi o Filipe que se entregou a nós num concerto inesquecível, pelo qual também ele aguardava, há já 2 anos, na “casa” que o viu crescer.
Desde o primeiro minuto que a energia foi contagiante. Havia, naturalmente, uma legião de fãs, na primeira fila, junto ao palco, e quem aproveitasse para se misturar e dançar no meio da sala. Deste lado, ficámos com a sensação de que não estávamos apenas a assistir a um concerto, mas a fazer parte dele.
Com a responsabilidade de ser uma das últimas do festival, a banda não só passou com distinção no teste de química, demonstrando um inesgotável companheirismo, como conseguiu mobilizar uma sala inteira e ensinar canções, erradicando toda e qualquer possibilidade de alguma alma sair daquele concerto sem rejuvenescer.
Além dos êxitos do EP “Teorias do Bem Estar” e “Modéstia À Parte”, o alinhamento contou com os singles “Vento Levou” e “Madrugada”, lançado semanas antes do concerto.
Contudo, foi com “Prejuízo” que Karlsson nos levou ao rubro, a dançar como se não houvesse amanhã, na festa que só ele sabe fazer. “Palmas para vocês!”, ouvíamos num entusiasmo que nos era devolvido em ricochete, quando já estávamos bem enredados no groove que a banda teceu para nós, a vibrar com os teclados, com os ritmos frenéticos da percussão e com a malha da inconfundível guitarra eléctrica.
Do início ao fim de “Lágrimas”, o êxtase era tanto que, no último solo, os acordes e a energia do público lembravam a comunhão de “Come Together”, dos Beatles, num clímax tão catártico, como divertido. Completamente envolvidos naquela experiência imersiva, dávamos por nós a agradecer e a pedir por mais, ao ponto de alinhar em todas as brincadeiras que a banda nos pedia.
A última vez que senti algo assim foi no concerto dos Cassete Pirata, em outubro de 2021, no Maria Matos, de onde saímos mais plenos do que quando entrámos. Curiosamente, com uma dinâmica semelhante, também cantada em português, com letras que ficam no ouvido em contagem decrescente até ao próximo concerto.
Talvez seja este o segredo. Ou talvez seja apenas a ingenuidade de quem acabou de desvendar um tesouro bem guardado, a um milímetro de ser descoberto pelo mundo. Talvez seja eu uma idealista, mergulhada nas canções que me dão sentido à vida.
Ou talvez não saiba viver longe dessa sensação de deslumbre a que espero sempre voltar como na canção “Maybe I’m Amazed”, dos Beatles, que pautaram o início desta crónica e com quem escolho terminar, numa versão menos convencional interpretada por dois outros cantores que admiro muito, a Norah Jones e o Dave Grohl, num tributo ao Paul McCartney.
Uma coisa é certa: em 2020, a Marinho verbalizava que era uma questão de tempo até estarmos todos juntos outra vez e, efetivamente, os concertos têm provado que nos encontramos todos à esquina.
De “Mãos Atadas” ou com elas soltas, precisamos de voltar a transpirar música, agora mais juntos do que nunca, porque “a esperança é sempre a última a morrer” [Vento Levou, Filipe Karlsson].
Sendo sincera, se algum dia o Filipe der com este texto, que me permita discordar do verso “o meu percurso está longe, longe de fazer sentido” [Sem Ser Sincero, Filipe Karlsson], pois, neste momento, tudo faz tremendamente sentido.
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