de Afonso Madeira Alves
No que se poderá classificar como “mais um dia”, um parlamentar britânico acorda cedo para preparar o debate semanal na Câmara dos Comuns. Enquanto toma um presumível pequeno-almoço inglês, revê os pontos-chave do discurso de oposição que dirigirá ao Mr. Speaker: criticar a conduta errática do primeiro-ministro desde o primeiro momento, acusá-lo de desonrar o cargo por mentir deliberadamente ao parlamento (e em consequência, ao povo britânico) e, por fim, exigir a sua óbvia demissão. “Hear, hear!”, ouve em antecipação através de vozes da sua cabeça.
Este sermão foi proferido no debate da passada segunda-feira por Ian Blackford, membro do parlamento e líder do Partido Nacional Escocês, no âmbito dos últimos desenvolvimentos do Partygate. O escândalo, que indica que Boris Johnson terá frequentado grandes festas com álcool em Downing Street enquanto o seu governo decretava um confinamento sanitário que afastou britânicos dos pubs e os aproximou do álcool gel, tem marcado a discussão pública desde que foi revelado em Dezembro passado.
No debate, a intervenção exasperada de Blackford provocou um riso nervoso na bancada conservadora que mais não fez na defesa do seu primeiro-ministro. Antes, a insatisfação já tinha extravasado partidos quando Theresa May, antecessora de Boris Johnson, perguntou directamente ao seu líder se este tinha lido as regras sanitárias ou se achou que estas não se aplicavam a si. Não é de excluir que, naquele momento, BoJo tenha sonhado com o cargo de chefe do governo português, onde o escrutínio parlamentar à sua figura apenas seria feito mensalmente e sempre por membros de outros partidos.
A bóia de salvação dos conservadores foi lançada pelo presidente da Câmara dos Comuns, Mr. Speaker Lindsay Hoyle, que não deixou passar o trecho em que Blackford acusou Boris Johnson de “mentir deliberadamente”, pedindo-lhe uma retracção que modificasse o advérbio para “inadvertidamente”, de forma a fazer cumprir as regras parlamentares. O independentista escocês recusou a ordem, reforçando a sua convicção de que o primeiro-ministro é mentiroso, e optando por abandonar a sala segundos antes de ser oficialmente expulso da sessão por Hoyle.
Por agora, de factual, sabe-se que decorre uma extensa investigação policial com acesso a centenas de fotografias e documentos. No entretanto, e de modo a não se perder a pujança da indignação, foi lançado para a praça pública um breve relatório preliminar da autoria de Sue Gray, uma especialista em ética parlamentar a quem não foi autorizada a exposição detalhada dos acontecimentos. Entre alegações triviais de “falhas de liderança” e “álcool em excesso”, a polémica tem evoluído à justa medida dos novos tempos: é impensável que haja quem ainda tente negar o óbvio — há vídeos do homem a dançar em claro clima de festão, porra! —, mas a nesga que permite a presunção de inocência tem sido manuseada por um político que se habituou a actuar entre a esperança e o furor.
Forçosamente, Johnson pediu desculpa pelo escândalo, mas sem sequer qualificar os eventos como “festas”. A sua pretensa demissão, suportada pela maioria do eleitorado recentemente inquirido, parece esbater no apoio que o primeiro-ministro ainda encontra dentro de um partido conservador que não se esquece do contexto eleitoral. No final do dia, a enorme experiência do partido com percalços, entendidos como crises circunstanciais e transversais a todos os líderes conservadores (incluindo Thatcher, Blair ou Cameron), está na base da acção política. O ultimato ao líder não está dependente de uma avaliação dos seus valores morais, mas sim do número de votos a mais que um sucessor traria.
Se pensarem bem, serão mesmo festas ou meras reuniões de trabalho? – twittou Nadine Dorries, outra Ministra da Cultura que prefere profissionalizar o conceito de drinks de fim de tarde.
Seis anos após o resultado do Brexit, o referendo popular mais manipulado desde a crucificação de Jesus de Nazaré, o caos tem sido a lei natural da política britânica. De um David Cameron remainer, e por isso demissionário, ao tri-falhanço negocial de Theresa May — sem esquecer uma oposição trabalhista que andou perdida em festivais de verão —, desassossega quando se reconhece Boris Johnson como garante de estabilidade, pois o mesmo é concebido como, no mínimo, instável.
Numa leitura estrangeira e desinteressada, poderá ser incompreensível como é que alguém que tinha melhores hipóteses de reencarnar como uma azeitona (palavras do próprio), acabou como homem providencial de um antigo império que se encontra em crise sanitária e identitária. Provavelmente habituados a olhar para os excelsos políticos britânicos da mesma forma que Antonida Vassílievna, a personagem de Dostoiévski que elogia os cavalheiros ingleses “que respondem sempre”, chocamos na relação com a persona criada pelo actual primeiro-ministro. Na verdade, Boris Johnson também tem sempre resposta: Nada do que vai acontecendo é importante para o que vai acontecer.
Sem dúvida que o Partygate foi sobre a sua demissão durante um primeiro momento. Depois, simplesmente deixou de o ser. Bodes expiatórios surgiram: um relatório “bombástico” que é bloqueado pela polícia, um parlamentar que é expulso em Westminster, um partido de poder cujos deputados acusam a chantagem. Ontem, Boris Johnson já só era notícia por ter ido em viagem até à Ucrânia para mediar o conflito com a Rússia.
Em certa medida, o governante britânico é o reflexo político mais nítido de uma era em que é somente permitido discutirmos o banal. O que até há minutos poderia parecer um assunto relevante, depressa se torna num novelo de frivolidade que nos enrola como uns Zés Albinos. Para tal, muito conta a acção daqueles que estão dispostos a encobrir e a desviar atenções, aproveitando-se de meios que não estão ao dispor do comum cidadão britânico.
Ainda no mesmo debate parlamentar, Keir Starmer, o líder da oposição trabalhista, dirigiu-se a Boris Johnson e confrontou-o com aquilo que é visto como a maior vantagem competitiva do primeiro-ministro: “Não lhe sei dizer quantas vezes as pessoas já me afirmaram que a sua falta de integridade está, de alguma forma, avalizada. E que o seu comportamento e carácter não interessam. Nunca o aceitei, nem o aceitarei. (...) Honestidade e decência importam.”
Poderá chegar o dia em que Starmer tenha razão. Por enquanto, Boris Johnson não se demitirá; porque apesar do povo britânico saber que este não tem carácter, ninguém está para pagar o preço da instabilidade.
Kommentare