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Parto sem dor: uma utopia?

Imagine-se a leitora numa cama de maternidade. Convido também, já agora, quem não tenha anatomia feminina a imaginar-se no corpo de uma grávida. As águas já rebentaram, as contrações vêm cada vez com mais frequência e a dor não pára de crescer. Não tem ninguém consigo, pois não é permitida a presença de acompanhantes. Está sozinha.

de Constança Cardoso



Imagem: Getty Images



A sua solidão é finalmente quebrada por uma turma de alunos, acompanhados pelo professor, que não a saúda, não se apresenta, nem pergunta como se sente e que passa a demonstrar aos seus alunos um procedimento de rotina na gravidez chamado toque vaginal, que, como o nome indica, consiste em inserir os dedos na vagina da mulher para avaliar a dilatação do colo do útero. Os alunos tomam nota e a turma segue para outra sala.



Depois de várias tentativas de captar a atenção das enfermeiras (em vão) para pedir a epidural, diz-lhe finalmente uma que não há gente disponível para a administrar e que, mesmo que houvesse, já seria tarde demais. Tinham deixado passar demasiado tempo. Sabe então a leitora que está prestes a enfrentar o momento mais doloroso da sua vida.



Chegada a hora, a dor é tanta que pensa que não a pode aguentar, que o seu coração vai dar de si antes de ter nos braços a criatura que o seu corpo gerou. É neste momento que ouve a parteira berrar-lhe para que faça força. Ouve também, entre a confusão e a gritaria, dizer-se “ah, agora chora, mas de certeza que na hora de o fazer não chorou assim, não foi?”.



De repente, dá com a parteira quase deitada sobre si, empurrando a sua barriga com toda a força: é a chamada "manobra de Kristeller", uma prática criada em 1867 e que serve supostamente para facilitar a saída do bebé, que é hoje considerada obsoleta e desaconselhada pela Organização Mundial de Saúde. Ninguém lhe disse isto, claro.



Ninguém lhe explicou nada sobre o que estavam a fazer ao seu corpo, desde o toque vaginal (cuja única explicação foi dada aos alunos) ao corte que lhe fizeram entre a vagina e o ânus, à enorme pressão sobre a sua barriga, até aos ferros e às ventosas. Teve de pesquisar tudo isto por si, mais tarde, e descobrir que todas estas práticas são consideradas obsoletas ou totalmente desnecessárias em casos que não sejam de extrema emergência.



Tenta esquecer tudo isto. Já tem a sua cria nos braços e, afinal de contas, os médicos salvaram-lhe a vida. É o que lhe dizem. Só há por que agradecer e não reclamar, que, antes de si. muitas passaram pelo mesmo e não fizeram essa birra toda.



Há que ser forte: agora é mãe e a sua única preocupação tem que ser a cria. Mas não consegue dar de mamar. Não percebe porquê. Sente-se inútil, falhou como mãe. Mais tarde é diagnosticada com depressão pós-parto… Que raio quererá isso dizer?



Este é, evidentemente, um relato com o seu quê de sensacionalismo, mas é também um relato construído a partir dos testemunhos de mulheres reais que passaram por estas situações.



O mais assustador é que os abusos físicos e psicológicos no parto são uma realidade provavelmente tão antiga quanto o parto em si.


Entre os vários relatos históricos, sobressaem, como especialmente macabros, os estereótipos das freiras parteiras.



No entanto, tem surgido, desde há relativamente pouco tempo, uma vontade cada vez maior de denunciar e combater estas práticas. Para isso, começa-se por nomear as coisas. "Violência obstétrica" foi o termo criado para definir esta realidade. É, porém, um termo altamente criticado pela comunidade médica que se diz estar “sobre ataque”.


No ano passado, a Ordem dos Médicos (OM) divulgou, inclusive, um parecer negacionista, a propósito de um projecto-lei que visava criminalizar este tipo de práticas.



Entre os vários argumentos que usaram para condenar o termo em questão, bem como o projecto-lei, achei um particularmente bizarro: dizia-se, basicamente, que a violência obstétrica não pode existir em Portugal porque este não é um país do “terceiro mundo” que não respeita os direitos humanos.


Ou seja, o facto de ser considerado um país desenvolvido basta para garantir que todos os relatos de violência obstétrica caiam automaticamente por terra.



Justificava-se, ainda, a condenação deste termo com a enorme diminuição da taxa de mortalidade materna e infantil, desde os anos 70.



Diz-nos, portanto, a OM que, se não há mortes, não há violência e ponto final.



Seguindo, porém, a lógica dos “países desenvolvidos” versus “países não desenvolvidos”, também podemos dizer que a taxa de episiotomia na Dinamarca é menos de 10%, ao passo que cá (Portugal) é um procedimento de rotina nos partos vaginais, sendo Portugal o país com a maior taxa de episiotomia da Europa (40,7%).



É comum, também, ouvirmos profissionais de saúde dizerem que as mulheres “exageram” quando falam destas experiências. Da mesma forma como exageram quando dizem que têm dores menstruais insuportáveis e, após anos de negligência médica, se descobre que têm endometriose, ou tal como exageram quando falam de violência doméstica, de assédio e de violação.



Estamos habituadas a assistir à relativização e banalização do nosso sofrimento. Quando o denunciamos, usam-se termos como “histerismo” para o descredibilizar. Somos tradicionalmente tratadas como crianças birrentas cuja natureza é exagerar e inventar e, por isso, estamos também habituadas aos “raspanetes”.


Nem temos de usar burca como lá nos Orientes e já podemos votar e sair do país sem autorização do marido - que mais queremos nós?



No caso das mulheres negras, a realidade é normalmente ainda mais macabra. O imaginário racista e colonial que desumaniza estas mulheres e lhes confere uma tolerância à dor quase bestial, contribui para tornar as suas experiências na maternidade ainda mais sinistras.



Não posso deixar de ver paralelos entre esta reação da Ordem dos Médicos e a reação das forças de segurança quando são acusadas de violência sistémica. É o corporativismo típico de quem sente o seu grupo atacado e é incapaz de pensar com seriedade nas críticas que lhe são dirigidas.


Há, obviamente, excepções. Há médicos que defendem o uso do termo "violência obstétrica" e que a encaram como uma realidade a combater, tal como há polícias que reconhecem que há um problema de racismo e de violência sistémica nas forças de segurança, bem como uma infiltração de neo-nazis. Porém, este tipo de corporativismo dá azo a enormes pressões para que o assunto seja abafado, inclusive, como já vimos, a nível legislativo.



Numa esfera mais ampla, há uma lógica semelhante por detrás do famoso “Not All Men” ou do sloganAll Lives Matter”: perante uma denúncia de violência, estes homens, ou estas pessoas brancas, são incapazes de pensar no problema em questão pois “eles não violam” ou “eles não são racistas” - o mesmo se passa nestes casos: também na violência obstétrica há um preocupante negacionismo por parte da comunidade médica que se diz sentir “ofendida” por este termo. Preocupa-se mais, em geral, com “defender a sua honra” do que com garantir que as mulheres são tratadas com dignidade e respeito na hora do parto.



“Nós, médicos, estamos cá para vos salvar a vida”, dizem-nos tantas vezes, como se isso lhes devesse conferir impunidade, como se isso justificasse tratar mulheres como gado. Também assim se justifica a banalização do abuso de poder nas forças de segurança: “a polícia está cá para manter a ordem”.



Tive, recentemente, conversas com amigos e familiares da área da medicina que me disseram, irritados, que apesar de não negarem que possa haver casos em que os profissionais de saúde “passem dos limites”, essa nunca será a maioria.



Que quer isso dizer? Que só devemos dar atenção a um problema quando ele se dá em mais de 50% dos casos? 22,7% de mães a sofrerem abusos verbais, físicos ou emocionais durante o parto não será demasiado? Quantas mais terão que sofrer, falar e ser ridicularizadas até que as levem a sério? Não estará já na hora de se desconstruir de uma vez por todas a normalização das dores da mulher? De se acabar com esta ideia de que “ser mãe é aprender a sofrer” e levar a sério o que estas nos têm a dizer?



Criticar uma recorrência num dado grupo não equivale a dizer que todos os membros desse grupo são condenáveis.



Denunciar um problema no modus operandi das salas de parto não equivale a dizer que todos os profissionais de saúde são violentos. É absolutamente fundamental que as instituições sejam receptivas às críticas que lhes são apontadas e que estimulem uma formação de profissionais baseada na constante na empatia e auto-reflexão.


Caso contrário, facilmente se mantém um clima de conservadorismo e arrogância que perpetua práticas completamente datadas.



Há que lutar por uma sociedade na qual o parto sem dor seja a norma e não a utopia.




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