Crónica de Constança Pirilampa
Em 2013, a chamada “dieta mediterrânica”, na qual o azeite é protagonista, entrou para a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.
No website da comissão nacional da UNESCO podemos ler o seguinte: “A convivialidade à mesa constitui elemento vital da identidade cultural e da continuidade das comunidades em toda a bacia do mediterrâneo, sendo um momento de troca social e de comunicação, uma afirmação e renovação da identidade da família, do grupo ou da comunidade. A dieta mediterrânica enfatiza valores da hospitalidade, vizinhança, diálogo intercultural e criatividade, desempenhando um papel vital em espaços culturais, festivais e celebrações, reunindo pessoas de todas as idades, condições e classes sociais”.
Todo o citadino de origem que se depare com esta harmoniosa descrição do mundo rural mediterrâneo facilmente dará por si imaginando uma idílica cena à mesa: quatro paredes caiadas e um cheirinho a alecrim, onde patrão e empregado partilham uma refeição caseira. “Que bom que deve ser… Felizes são os que vivem com pouco, rodeados por natureza”. Bem sabem estes citadinos que a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente. Cai o pano e aplaudem comovidos os urbanos, mas levantam-se antes que possam ler os créditos finais. É um hábito que se tem perdido.
Ficam por referir as monoculturas que arrasam os solos, os salários miseráveis, o trabalho de sol a sol, os contentores disfarçados de casas onde dorme a mão de obra barata, que pouco tem a perder. Fica por referir, também, que mão de obra é esta: Indianos, Nepaleses, Paquistaneses, Senegaleses, entre tantos outros que trabalham no Alentejo sob condições que (quase) ninguém está disposto a aceitar: são pagos à hora, ainda que trabalhem por vários meses seguidos; vivem em casas, ou mesmo contentores, sobrelotadas onde têm que dividir quarto com várias pessoas e, por vezes, sem acesso a água limpa.
Apesar do recorrente negacionismo, esta realidade não é muito diferente da de quem trabalhou no campo alentejano antes da reforma agrária. Porém, as memórias desses trabalhadores fazem parte do que o historiador Enzo Traverso chamaria de “memórias fracas”, ou seja, sem representação no discurso hegemónico. Nem no ensino obrigatório há referência ao que era a realidade de muitos dos nossos avós.
Este ano tive o privilégio de recolher algumas histórias de vida de antigos trabalhadores rurais de Ferreira do Alentejo que me puderam confirmar esta comparação: trabalhavam desde a infância, debaixo de chuva, granizo ou sol em brasa, para que não fossem um fardo para as famílias. Levantavam-se antes que o sol nascesse e regressavam a casa depois deste se pôr. As famílias trabalhadoras dividiam pequenas casas sem água, luz elétrica ou canalização e o trabalho era duro e mal pago. “Muita força p’ra pouco dinheiro”, como diria Sérgio Godinho. De um lado, uma massa de anónimos que buscam trabalho a qualquer custo, do outro, patrões que lucram com o seu desespero.
De outro lado ainda, a dieta mediterrânea torna-se património da humanidade e o turismo do azeite torna-se chique. Entre as actividades mais procuradas estão as visitas guiadas a lagares e olivais, as provas de azeite e, ironicamente, até a apanha da azeitona. Os preços por participante, claro, não são pensados para a população local, mas para turistas endinheirados, seduzidos pela ideia de consumir uma experiência “autêntica” que pensam não existir nas cidades de onde normalmente vêm.
A patrimonialização tem destas coisas. Esta, como explica o antropólogo Pablo Alonso, facilmente converte a cultura numa mercadoria descontextualizada, deslocada do seu meio e das relações sociais que lhe são inerentes, sobretudo no que toca a relações de poder e dominação.
Perversamente, não só o turismo do azeite não é destinado nem acessível a quem verdadeiramente sustenta a campanha da azeitona, como a sua realidade laboral é escondida do público. Como dizia António, uma das pessoas que entrevistei há uns meses, “nunca vem nada a favor de quem trabalha, aquele que explora é quem sai beneficiado”. Será caso, então, para questionarmos: património para quem? Não há espaço para sangue, suor ou lágrimas numa candidatura à UNESCO, nem no rótulo de um azeite gourmet. Apenas para “valores da hospitalidade, vizinhança, diálogo intercultural e criatividade, (…) festivais e celebrações”.
Habituámo-nos a pensar o património como algo que preserva e valoriza e, em muitos casos, com razão. Em muitos outros, no entanto, este só o faz com o lado mais sedutor e mercantilizável do que está em questão. É por isso que, a propósito da recente onda de protestos anti-racistas nos Estados Unidos, Enzo Traverso disse: “Tearing down statues doesn’t erase history, it makes us see it more clearly”. Talvez esta recente vontade de destruir património não seja tanto uma questão de “apagar a História”, mas sim de garantir que esta seja contada pelos que foram esquecidos. Ironicamente, o “anti-património”, expressão cunhada por Pablo Alonso, pode ser mais eficaz na preservação da História do que o seu inverso. Escolher não emblematizar não significa esquecer, muitas vezes significa precisamente o contrário.
Faço minhas as palavras de José Mário Branco:
“Porque não tentar outro ponto de vista A história dos outros quem a contará Se qualquer colónia sem colonialista São os que já estavam lá”.
É urgente começar a olhar para a sombra do património e criar políticas de memória que garantam que a história “dos outros” seja contada. Será mais fácil protegermo-nos de quem promete fazer das tormentas a boa esperança se conhecermos os vários lados da História.
A luta por um futuro mais justo depende muito do que escolhemos recordar e do que escolhemos esquecer e, por isso, há que resgatar a memória de lutas passadas e dar voz às lutas presentes, para que o futuro não se esqueça de as ter em conta.
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