Crónica de Afonso Abecasis Gomes
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA FCSH
Um mundo sem pobreza - talvez seja a mais velha das utopias.
Mas qualquer um que leve este sonho a sério deve inevitavelmente enfrentar algumas perguntas difíceis. Porque os pobres são mais propensos a cometer crimes? Por que são mais propensos à obesidade? Por que consomem mais álcool e drogas? No fundo, por que é que uma pessoa pobre tem maior tendência a tomar decisões erradas?
Duro? Talvez, mas olhemos para as estatísticas: os pobres emprestam mais, poupam menos, fumam mais, exercitam menos, bebem mais e têm uma alimentação menos saudável. Nas formações gratuitas são os últimos a inscreverem-se. Quando respondem a anúncios de emprego, muitas vezes enviam as piores candidaturas e aparecem nas entrevistas com a roupa menos profissional.
Margaret Thatcher uma vez chamou à pobreza um "defeito de personalidade". Embora poucos políticos tenham ido tão longe, esta visão de que a solução reside no indivíduo não é excecional. Da Austrália à Inglaterra, da Suécia aos Estados Unidos, existe uma noção entrincheirada de que a pobreza é algo que as pessoas têm de superar por si próprias.
Claro que o governo pode empurrá-los na direção certa com incentivos: políticas de promoção, penalizações e, acima de tudo, com a educação. Se há uma bala de prata na luta contra a pobreza, é um diploma do ensino secundário (ou melhor ainda, um diploma universitário).
Mas isto é tudo o que se pode fazer?
E se os pobres não forem capazes de se ajudar? E se todos os incentivos, toda a informação e educação forem em vão? E se todos aqueles empurrões bem intencionados só piorarem a situação?
Estas são perguntas duras, mas, na verdade, não é qualquer é um que as faz. É Eldar Shafir, psicólogo da Universidade de Princeton. É Rutger Breman, historiador da Universidade de Utrecht. É Esther Duflo, economista e professora no MIT. Todos eles criaram e desenvolveram teorias revolucionárias sobre a pobreza.
A essência? Está no contexto.
Para estes grandes pensadores, o foco gira em torno da escassez. E a percepção que dela temos não é omnipresente. Um horário vazio parece bastante diferente dum dia cheio de trabalho. A verdade é que a escassez afeta-nos a mente e as pessoas comportam-se de forma tão diferente quando se apercebem que algo é escasso.
O que é que é escasso não importa tanto. Seja pouco tempo, dinheiro, comida – tudo contribui para uma "mentalidade de escassez". E isto traz alguns benefícios. As pessoas que vivenciam uma sensação de escassez são boas na gestão dos seus problemas a curto prazo. Os pobres têm uma capacidade incrível, a curto prazo, de pagar despesas.
Apesar disto, as desvantagens duma "mentalidade de escassez" são maiores do que os benefícios. A escassez limita o nosso foco à falta imediata – à reunião que começa em cinco minutos ou às contas que precisam de ser pagas amanhã. A perspetiva a longo prazo desvanece. "A escassez consome-nos", explica Shafir. "Somos menos capazes de nos concentrarmos noutras coisas que também são importantes para nós."
Bregman comparou esta situação a um novo computador que executa 10 programas ao mesmo tempo. Fica mais lento, comete erros e acaba por congelar – não porque seja um mau computador, mas porque tem de fazer muito ao mesmo tempo. As pessoas pobres têm um problema análogo - tomam más decisões não por defeito de personalidade, mas porque vivem num contexto em que qualquer um de nós tomaria más decisões.
Perguntas como “O que vou comer hoje?” e “Como vou pagar as contas desta semana?” acarretam uma importância crucial.
Trata-se da “largura de banda mental” que Shafir esclarece. “Se queremos perceber os pobres, temos que imaginar a nossa mente noutro sítio”. O auto-controlo impõe-se como um desafio, ficamos distraídos e facilmente perturbados. E isto acontece todos os dias. É assim que a escassez – de tempo ou dinheiro – leva a decisões imprudentes.
Mas o fundamental aqui é a distinção entre pessoas com vidas ocupadas e as que vivem na pobreza: não se pode fazer uma pausa da pobreza.
Os efeitos da mesma correspondem a perder entre 13 e 14 pontos do QI. Isto é comparável a perder uma noite de sono ou sofrer efeitos de alcoolismo. O impressionante é que isto poderia ter sido descoberto e debatido há décadas. Os economistas estudam a pobreza e os psicólogos estudam as limitações cognitivas há anos. Shafir e os seus colegas limitaram-se a juntar as duas áreas.
Após várias experiências ao longo dos anos onde puderam comprovar os impactos da pobreza nas habilidades cognitivas das pessoas, sentiam que havia um elefante na sala: as pessoas ricas e as pessoas pobres das diversas experiências simplesmente não eram a mesma pessoa. Idealmente, Shafir e os colegas seriam capazes de repetir as pesquisas com indivíduos que eram pobres num momento e ricos no outro.
E eis que encontraram o que procuravam, a milhares de kms de distância, em Vilupuram e Tiruvannamalai, no interior rural da Índia. As condições eram perfeitas - acontece que os agricultores de cana-de-açúcar da região recolhem 60% do seu rendimento anual de uma só vez, logo após a colheita. Isto significa que são ricos numa parte do ano e pobres na outra.
Quais foram então os resultados?
Na altura em que eram relativamente pobres, marcaram substancialmente pior nos testes cognitivos. Não porque se tivessem tornado em pessoas menos inteligentes – afinal de contas ainda eram os mesmos agricultores de cana-de-açúcar – mas pura e simplesmente porque as suas “larguras de banda mental” estavam comprometidas.
O combate à pobreza tem enormes benefícios para os quais temos sido cegos. Na verdade, tanto Shafir como um dos seus mais conceituados colegas, Sendhil Mullainathan, sugerem que, além de medirmos o PIB, talvez seja altura de começarmos a considerar a largura de banda mental interna bruta enquanto fator de análise nos países. Uma maior largura de banda mental equivale a uma sociedade com melhor educação infantil, melhor saúde, melhores condições laborais, melhor produtividade, e tantas outras áreas que a todos nós nos tocam. Aliás, combater a escassez pode até reduzir os custos que lhe estejam associados.
Então, o que é que podemos fazer?
Shafir e Mullainathan explicam algumas das soluções atuais: auxiliar os carenciados com toda a abismal papelada burocrática. Esta solução é conhecida por "empurrão". Os empurrões são muito populares entre os políticos, principalmente porque custam quase nada.
Mas, honestamente, que diferença pode fazer um empurrão? O empurrão simboliza uma era em que a política se preocupa principalmente em combater os sintomas e não a causa do que está mal. Os empurrões podem servir para tornar a pobreza infinitamente mais suportável, mas quando se faz um zoom, vê-se que não resolvem exatamente nada. Voltando à analogia do computador, Rutger Bregman questionou-se: porquê continuar a mexer no software quando podemos facilmente resolver o problema instalando alguma memória extra?
É verdade que seria preciso um grande programa para erradicar a pobreza pelo mundo fora, ou até nos EUA. De acordo com os cálculos do economista Matt Bruenig, custaria 175 mil milhões de dólares. Mas a pobreza é ainda mais cara. Um estudo realizado por investigadores da Northwestern University estimou o custo da pobreza infantil em até 500 mil milhões de dólares por ano. As crianças que crescem pobres acabam com menos dois anos de educação, trabalham menos 450 horas por ano e correm três vezes mais o risco de adoecerem do que as que nascem em famílias mais abastadas.
Os investimentos na educação não vão ajudar estas crianças, dizem os investigadores. Primeiro têm de ultrapassar o limiar da pobreza. Uma grande análise em 2013 de 201 estudos sobre a eficácia da educação financeira chegou a uma conclusão semelhante: esta educação pouca diferença faz. Isto não quer dizer que ninguém aprenda nada – os pobres podem ficar mais instruídos, com certeza. Mas não é suficiente. "É como ensinar uma pessoa a nadar e depois atirá-la num mar repleto de tempestades", segundo Bregman.
Isto não tem que ser assim.
"A pobreza é o grande inimigo da felicidade humana; destrói a liberdade, e torna algumas virtudes impraticáveis, e outras extremamente difíceis", proferiu o escritor britânico Samuel Johnson em 1782. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, percebeu que na pobreza o que falta não é caráter.
É dinheiro.
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