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Porque não devem existir milionários

Atualizado: 15 de mar. de 2020


A questão não pode ser perspectivada de forma maniqueísta e a oposição a uma classe de super-ricos deveria ser comum a todo o espectro político, enquanto condição para a política realizar o seu papel


Em Setembro de 2019, o senador norte-americano de Vermont, Bernie Sanders, afirmou que os milionários não deveriam existir. Esta afirmação gerou uma polarização do espectro político, animando democratas progressistas e socialistas que não saíam do armário, preocupando as alas conservadoras do partido e unindo quase todos os republicanos para o advento da ressurreição de Marx num beijo erótico e apaixonado de barbas entrelaçadas com o bigode de Estaline, cujo amor tem o potencial para fazer colapsar a civilização ocidental e setenta anos de hegemonia de valores.

Uma coisa é certa, Bernie Sanders lançou um debate sobre a própria estrutura da sociedade, na perspectiva prática e moral da existência de uma classe de ultra-ricos.

Esta questão parece operar numa clivagem entre esquerda e direita, na esquerda entre radicais e moderados, ou entre as pessoas de bem e os jacobinos, cuja pureza ideológica os furta do alcance da razão e consequente concessão.

A questão não pode ser perspectivada de forma maniqueísta e a oposição a uma classe de super-ricos deveria ser comum a todo o espectro político, enquanto condição para a política realizar o seu papel. Aqui deixo as principais razões.


Em primeiro lugar, a questão da moralidade da riqueza exacerbada quando ela convive com a miséria. Segundo o estudo da Oxfam publicado em 2017, 8 pessoas têm tanta riqueza quanto metade da humanidade junta. Se parece pacífico que a criação de riqueza tenha de gerar uma recompensa, a ausência pornográfica de limites a essa recompensa não é nem pacífica nem aceitável. O dinheiro, entre outras coisas, é liberdade, é poder e dignidade, consequentemente a concentração em oito pessoas de tamanha soma de dinheiro que nem elas nem as próximas dezenas de gerações poderão gastar furta directamente às outras 3,6 biliões de pessoas a liberdade e dignidade que poderiam obter. É, em suma, um roubo que, baseado no direito de todos à dignidade, nos leva a concluir que este dinheiro podia ser usado para tirar milhões da pobreza através da construção de escolas, hospitais, infraestruturas, etc. Pelo contrário, este dinheiro fica preso em contas privadas de oito pessoas, que são cúmplices de um jogo viciado em que as condições de partida são determinantes.


Em segundo lugar, existe o argumento da democracia, que fez o candidato a prémio Nobel da Economia James Robinson e Aristóteles concordarem que os grandes níveis de desigualdade degeneram em formas autoritárias de governo. Se o segundo nos fala da tirania dos ricos ou dos pobres por reacção, o primeiro fala-nos de fenómenos muito menos abstractos e mais fáceis de observar, como é o caso da luta contingencial nas democracias liberais entre duas grandes tendências, entre os que querem o governo de todos - a democracia - e os que querem um governo dos poucos ou governo dos ricos - a plutocracia. O Democracy Index do Economist Intelligence Unit deixou de considerar os Estados Unidos desde 2016 “uma democracia plena”, sendo hoje classificada como uma “democracia com falhas”, o que será demonstrativo do enfraquecimento da democracia perante outros elementos, como o factor da riqueza na equação política.

Todavia, o que aconteceu aos EUA dificilmente pode ser atribuído a Donald Trump ou Barack Obama ou até George Bush, mas sim a uma evolução paulatina das instituições. As eleições tornaram-se cada vez mais caras e consequentemente o dinheiro tornou-se mais importante na política, num país onde o lobby, ao contrário dos estados europeus, encontra-se legalizado.

Por fim, em 2010 foi estendida a liberdade de expressão a empresas com o caso Citizens United, pela primeira vez na História dos Estados Unidos as empresas podem doar diretamente dinheiro a campanhas políticas, aceitando assim que organizações económicas possam ser agentes determinantes do processo político democrático.

O resultado disto tudo são uns Estados Unidos menos democráticos, onde a vontade do eleitor compete com a vontade das empresas, prevalecendo muitas vezes esta última; Onde os partidos precisam de dinheiro para as campanhas e esse dinheiro vem de empresas e pessoas que não irão pagar por políticas contra os seus interesses, tais como aumentar os impostos para financiar programas sociais contra a pobreza. Tendo em conta esta circunstância não é por isso surpreendente o fracasso do estado social dos Estados Unidos, onde mais de 50% dos americanos estão abaixo da classe média baixa e onde a mobilidade social é reduzida. Um estudo de 2012 do Pew Economic Mobility Project Study demonstrou que 43% das crianças que nascem numa família de classe baixa vão permanecer na sua classe social, e apenas 4% conseguirão chegar à classe alta.

Esta força anti-democrática acontece por duas razões. Por um lado pela já mencionada necessidade de financiamento das campanhas, e por outro pelo facto de a sociedade estar organizada para o crescimento económico e desse crescimento depender do investimento e o investimento, no caso de grandes níveis de desigualdade, estar na mãos de muito poucos que o podem negar ou atribuir. O resultado é uma verdadeira forma de poder extra-democrática, em que as pessoas podem votar, mas os seus programas, se forem contra os interesses empresariais, podem não ser cumpridos, sob pena de grandes empresas não investirem ou mudarem as suas sedes fiscais. Esta greve do capital pode deixar de funcionar como força paralela se o controlo do investimento estiver em mais mãos, noutras palavras se existir melhor distribuição da riqueza. O que não acontece nos Estados Unidos no qual 1% da população controla 90% da riqueza em contrapartida com Portugal que controlam 25% da riqueza.


Em terceiro lugar, a existência de milionários afeta negativamente o crescimento económico, uma vez que a sua maior influência no estado tem potencial para gerar políticas que as beneficiam, criando distorções na concorrência e criando barreiras de mercado a novos empresários. É este o cenário nos Estados Unidos, onde o crescimento económico está a abrandar, enquanto alguns sectores, como o financeiro, têm tido uma tendência de concentração dos agentes.

A par da concentração e criação de monopólios como a Google, existe uma ausência de políticas para desfazer os monopólios e oligopólios que existem, ao contrário das políticas concorrenciais que dissolveram os monopólios durante a primeira metade do século passado, até ao advento do reaganismo e à inauguração do neoliberalismo, adversos às interferências no mercado.

Este tipo de medidas podem promover o crescimento da economia, aumentar o PIB e gerar postos de trabalho relativamente bem pagos, mas, a longo-prazo, fecham os mercados à entrada de novos agentes, roubando às sociedades todos os benefícios que poderiam vir das inovações de novos agentes. Geram-se assim ciclos viciosos, em que empresas relativamente grandes usam o seu tamanho para ter mais influência nas políticas concretas, que funcionam a seu favor por acção ou omissão, o que por sua vez lhes atribui vantagens que permitem replicar o mesmo modus operandi.


Em suma, a existência de milionários é moralmente injusta, economicamente indesejável e potencialmente anti-democrática. A experiência dos Estados Unidos serve como reflexão sobre que tipo de sociedade e democracia queremos e como uma premonição para Portugal se não corrigirmos as desigualdades gritantes. A resposta comum aos partidos deveria ser uma sociedade livre, justa e democrática, o que não é compatível com uma classe de ultra-ricos.

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