Este é o paradoxo das instituições governamentais: embora detenham o poder para controlar a informação e o seu modo de transmissão e, consequentemente, os indivíduos - assumidamente destituídos de sentido crítico -, a sua ação peca por não contribuir para a entre-ajuda dentro das comunidades
Aliada à nova forma de movimentação metropolitana, que se começa a construir por toda a Europa na segunda metade do século passado, surge uma alucinante aceleração da urbe com a capacitação dos cidadãos de novas possibilidades, entre elas o suicídio.
Neste contexto, o metro de Viena, em 1978, é o paradigma da exponenciação da taxa de suicídio, ao qual se associam outros fatores que transformam este espaço – de si já subterrâneo – no local ideal para a materialização de uma ideação suicida. Entre os contribuidores, aquele com maior ponderação é o da comunicação social, especificamente no que diz respeito aos relatos suicidários sensacionalistas, simplistas, ultra-descritivos nos métodos e romantizados, com subsequente “glorificação” do sujeito. Assim, através de um suicídio em massa, banalizado pelos media, e de uma resposta psicológica humana, observa-se o Efeito Werther – termo técnico que se baseia na imitação de comportamentos suicidas, nomeadamente do método utilizado, após o fenómeno de publicação do livro A Paixão do Jovem Werther, de Goethe. Consequentemente, um indivíduo ambivalente sente a balança da vontade de viver pendendo em direção ao suicídio.
Tal condição urgente foi abordada em 1987, com uma campanha de alteração na forma de noticiar estes acontecimentos, que incluía a sensibilização dos repórteres para a sua influência neste assunto (com consequente elaboração de guidelines, agora publicadas e difundidas pela OMS no seu plano de prevenção do suicídio). Os resultados desta modificação foram surpreendentes: uma queda de 84,2% (da primeira para a segunda metade de 1987) dos suicídios cometidos no metro, suportando a conclusão de que é possível prevenir o suicídio através da influência dos relatos dos media.
Desta forma, todos os programas para a prevenção do suicídio explicitam medidas concernentes à comunicação social, incluindo o português. Após a exposição do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (PNPS), publicado pela DGS para os anos 2013-2017 (não havendo, ainda, um correspondente atual), a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) abriu os braços àquelas que foram as recomendações sugeridas. Como se constata no segundo ponto das deliberações, a ERC compromete-se a “Manifestar uma atenção especial, no âmbito exclusivo das suas competências regulatórias, e durante a vigência do PNPS, à abordagem da temática do suicídio pelos órgãos de comunicação social também à luz das recomendações ali feitas.”.
Importa, então, discutir alguns tópicos desta colaboração entre os media e a saúde pública. O primeiro diz respeito ao objetivo desta proclamada entre-ajuda: terá este alinhamento contribuído para a efetiva diminuição dos suicídios? Relativamente à análise jornalística, a imprensa portuguesa, em contraste com um jornalismo sensacionalista que contribuiu para a situação supradita, segue as recomendações da OMS, procedendo à escrita de relatos suicidários através de uma abordagem institucional, aliando a caracterização do indivíduo a uma doença mental de base (um dos mais importantes fatores de risco). Contudo, como se conclui no estudo Representações do suicídio na imprensa generalista portuguesa, “(...) o tom factual das histórias, a preocupação com os números e a objetivação dos processos e atos decorrentes do uso do discurso técnico das fontes consultadas, podem contribuir para um excessivo distanciamento dos leitores face à sorte do suicida e alimentar sentimentos de medo. Estes factos em nada ajudam o cuidado com o outro. Ora, o cuidado com o outro é essencial para que a sociedade se torne efetivamente um agente de prevenção do suicídio.”. Acresce que, apesar das oscilações da taxa de suicídio nacional, com uma tendência negativa nos últimos dois anos – estatisticamente pouco significativa –, Portugal mantém uma percentagem de suicídio acima da média global. Esta constatação sustenta que a imprensa portuguesa pode não ter um impacto negativo na propagação de fenómenos de suicídio, mas que, certamente, não tem um papel ativo na prevenção. Segundo as considerações da OMS, esta prevenção também se faz à custa de relatos de pessoas, muitas vezes com perturbações mentais, que superam a ideação suicida, permitindo, assim, que os diferentes métodos utilizados (por exemplo, a psicoterapia), analogamente à imitação do suicídio, possam ser reproduzidos.
O segundo tema que se pretende levantar é o do poder da saúde pública e, eventualmente, de outros motes governamentais sobre a comunicação social, em particular sobre a liberdade de imprensa e de divulgação. Em primeiro lugar, a noção de que a razão do indivíduo deriva de acordo com as flutuações da comunicação social sugere uma anulação da mesma. Logo, aquela que deve ser a abordagem destas influências, que se estendem aos anúncios de tabagismo (proibidos e produtos elevadamente taxados), de álcool (controlado em quantidade, local de exposição de anúncios de rua e fora do horário nobre televisivo), de alimentos açucarados (em discussão a eficácia da sua taxação), não pode passar pela coerção do cidadão comum, mas sim pela capacitação do mesmo. O argumento que suporta estas ações de controlo é empiricamente forte, mas deontologicamente hediondo. Podemos, então, expandir este domínio à saúde mental e, em particular, ao suicídio, onde o controlo da transmissão de informação se tornou mais fácil do que a elaboração de equipas comunitárias (em sede de Unidades de Saúde Familiar, por exemplo), com capacidade de responder celeremente às populações que servem através de psicólogos, médicos, assistentes sociais e enfermeiros. E é precisamente neste ponto que se deteta o paradoxo das instituições governamentais: embora detenham o poder para controlar a informação e o seu modo de transmissão e, consequentemente, os indivíduos (assumidamente destituídos de sentido crítico), a sua ação peca por não contribuir para a entre-ajuda dentro das comunidades, num modelo de interação interpessoal e não de instituição-pessoa, mais concretamente no que diz respeito à saúde mental que beneficia do contacto humano.
Decorrente desta falta de investimento na habilitação e ajuda pessoa-pessoa surgem fenómenos em plataformas ainda não controladas, como a “Baleia Azul” e a “Momo”, apontando insuficiências no modelo de intervenção atual. Questiona-se se a abordagem passará por um alargamento do controlo aos novos meios de comunicação ou se, desta vez, o objetivo passa pela humanização destas situações.
O caminho traçado até ao estado atual, com crescente intervenção em nome da Saúde Pública, e as novas possibilidades na mão dos cidadãos exigem uma reflexão do poder veiculado à Saúde Pública nos media e na liberdade individual – será aceitável uma entidade estatal interferir na vida privada na ausência de conflito interpessoal?
Francisco Mourão
PÁRA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO
"Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...
Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára m cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.
Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria
Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora."
Ângelo de Lima, in 'Antologia Poética'
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