Os Acordos de Abraão, celebrados por Donald Trump no final do seu mandato, foram considerados como uma das suas grandes conquistas diplomáticas. Contudo, o recente escalar do conflito na Faixa de Gaza virou todo o mundo árabe contra Israel. Poderão os acordos do ex-presidente dos EUA estar comprometidos?
Editorial por João Moreira da Silva
Em agosto de 2020, Donald Trump surpreendeu o mundo - em particular, o mundo árabe - ao anunciar o estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e os Emirados Árabes Unidos. A surpresa era justificada: tratava-se do primeiro Estado do Golfo Árabe a abrir as suas portas aos israelitas, e apenas a terceira nação árabe a fazê-lo. Até a esse dia, apenas o Egipto e a Jordânia tinham normalizado as suas relações com Israel. Foram assim celebrados, em setembro desse mesmo ano, os Acordos de Abraão, mediados pelos norte-americanos e assinados pelos governantes dos respetivos estados.
“Agora que o gelo foi quebrado, espero que mais países árabes e muçulmanos sigam os Emirados Árabes Unidos”, afirmou na altura o ex-presidente dos EUA. Assim foi: ao longo dos meses seguintes, o Bahrein, Marrocos e o Sudão juntaram-se ao leque de países do Médio Oriente que normalizavam as suas relações com Israel graças à mediação norte-americana. “É o alvorecer de um novo Médio Oriente”, proclamava orgulhosamente Donald Trump na Casa Branca, já na fase final do seu mandato. Os acordos não estabeleciam apenas a abertura a relações diplomáticas com Israel, mas também incluíam a cooperação dos países em áreas como a segurança e os serviços secretos.
Até à celebração dos Acordos de Abraão, a posição dos países árabes era unívoca: só estariam dispostos a normalizar as suas relações com Israel se fosse concretizado um acordo com a Palestina, que levasse à criação de um Estado Palestiniano viável. Por essa razão, a celebração destes acordos levantou, na altura, fortes vozes de protesto vindas da Palestina, que criticavam os EUA e os estados árabes por estabelecerem relações com o Estado de Israel sem estar prevista qualquer solução para o conflito israelo-palestiniano.
No entanto, estes sinais de descontentamento não se cingiram exclusivamente aos palestinianos. Na época, Ayatollah Ali Khamenei, o líder supremo do Irão, apelidou os acordos como “uma traição do mundo muçulmano.” Como explicou H.A. Hellyer, associado-sénior do Carnegie Edowment for International Peace, ao Financial Times, o sentimento público no mundo Árabe era - e continua a ser - fortemente pró-Palestina, apesar destes acordos com Israel.
O mundo árabe contra Israel
Atualmente, com o mais recente escalar do conflito israelo-palestiniano, os Estados Árabes encontram-se numa situação altamente desconfortável. Como explica a BBC, após países como os Emirados Árabes Unidos e Marrocos terem “vendido” à sua população os benefícios de se aliarem a Israel - no comércio, turismo, investigação médica, economia verde e desenvolvimento científico -, esta mesma população assiste agora a noticiários que transmitem os bombardeamentos de Israel na Faixa de Gaza, a ameaça de despejo de palestinianos em Jerusalém Oriental, ou a invasão da polícia israelita na mesquita de Al-Aqsa, um templo sagrado para a comunidade muçulmana - a religião maioritária nos países árabes.
Perante esta subida de tom do conflito, as reações do mundo árabe contra Israel começam a acumular-se. O governo dos Emirados Árabes Unidos publicou, no dia 8 de maio, uma declaração na qual condenou “fortemente” a proposta israelita de despejos em Jerusalém Oriental e a invasão da polícia na mesquita de Al-Aqsa. Esta declaração não foi surpreendente: a cidade de Jerusalém é a terceira cidade sagrada do Islão, antecedida apenas por Meca e Medina, pelo que a invasão a esta mesquita tocou num “ponto fraco” da comunidade muçulmana do Médio Oriente. Neste sentido, o governo de Bahrein também veio a publicar várias declarações na última semana nas quais reafirmou o seu apoio à causa palestiniana.
Contudo, os protestos dos Emirados Árabes Unidos não ficaram por aqui: depois de, no mês passado, o governo ter denunciado os atos de violência “cometidos por grupos de extrema-direita em Jerusalém Oriental”, na semana passada o país veio apoiar um pedido feito ao Tribunal Penal Internacional por um conjunto de países árabes para “investigar crimes de guerra e crimes contra a humanidade” cometidos por Israel contra os palestinianos. “Os Emirados Árabes Unidos defendem os direitos dos palestinianos, o fim da ocupação israelita e uma solução de dois-estados, com uma Palestina independente e Jerusalém Oriental como a sua capital”, afirmou expressamente Anwar Gargash, conselheiro diplomático do Presidente.
Por sua vez, o governo de Marrocos também veio a manifestar o seu mal-estar com o atual conflito. Depois de ter assinado os Acordos de Abraão por motivos estratégicos - em troco da sua assinatura, os EUA reconheceram a sua soberania sobre um território disputado no Sahara Ocidental -, o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino afirmou que estava a seguir os acontecimentos na Faixa de Gaza com “muita preocupação.” No domingo, foram realizadas manifestações de solidariedade com a Palestina em diferentes pontos do país, incluindo na capital de Rabat, noticiou a AfricaNews, tendo o governo marroquino enviado assistência humanitária para os territórios palestinianos no Sábado.
Assim, todos os países que vieram a assinar acordos diplomáticos com Israel há menos de um ano unem-se agora para condenar as suas mais recentes ações. À frente deste coro de críticas no mundo árabe posicionam-se os líderes do Irão e da Turquia - Khamenei e Erdogan -, que sempre se opuseram à normalização de relações com a nação judaica, pelo que têm aproveitado o momentum para capitalizar a situação.
O fim dos acordos da era Trump?
Perante esta união do mundo árabe na condenação de Israel - inclusivamente dos países que celebraram acordos diplomáticos no final do mandato de Donald Trump -, paira uma questão no ar: será que os Acordos de Abraão têm um fim à vista?
Segundo o New York Times, a maioria dos analistas afirma que, apesar dos mais recentes desenvolvimentos do conflito israelo-palestiniano, os acordos vão sobreviver. Na verdade, explica o jornal norte-americano, a Administração de Joe Biden não só pretende reforçar os acordos, como também planeia expandi-los a outros países do Médio Oriente. No mês passado, o Secretário de Estado Antony J. Blinken sublinhou que a atual administração “dá as boas-vindas e apoia” os Acordos de Abraão e espera que “o grupo de amigos de Israel cresça ainda mais no próximo ano.”
Neste sentido, também Michael Stephens, membro associado do think thank Royal United Services Institute, disse à BBCque “com certeza que os Emirados Árabes Unidos não vão sair dos Acordos”, mas que “as relações [com Israel] vão ficar em pausa até os acontecimentos acalmarem.” Ou seja, não são expectáveis grandes receções diplomáticas com televisões e câmaras num futuro próximo.
Assim, apesar da crescente solidarização com o povo palestiniano demonstrado por todos os estados do Médio Oriente que há poucos meses abriam as portas a Israel, o fim dos Acordos não parece ser um cenário provável. Por enquanto, os estados do mundo árabe continuarão a gerir os benefícios que retiram da sua relação com Israel - em particular, o desenvolvimento tecnológico - com o crescente descontentamento popular perante o escalar do conflito armado. No final do dia, parece que continuam a ser os EUA a marcar o ritmo. Pelo caminho, milhões de vida são colocadas em causa com este xadrez geopolítico.
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