de Francisco Lemos Araújo
Estamos hoje a exatamente nove dias da entrega da proposta de Orçamento do Estado para 2025 na Assembleia da República por parte do Governo. Tendo isto em mente, este podia (e se calhar devia) ser um texto sobre o desenrolar destas últimas semanas. No entanto, tenho de escrever sobre algo que não me sai da cabeça e que, uma vez mais, diz respeito à União Europeia e à nossa posição em relação a esta.
Na semana passada, o Tribunal Europeu de Justiça (Tribunal de Justiça) proferiu uma decisão para a qual creio ser necessário olhar com calma. Segundo o entendimento do Tribunal de Justiça, um juiz nacional pode abster-se de aplicar uma decisão do seu Tribunal Constitucional se essa decisão for contrária ao Direito da União Europeia.
Antes de desistirem desta breve reflexão, descanso-vos, pois, apesar de ser um exercício interessante, não analisarei a decisão de um ponto de vista jurídico – deixo isso para os especialistas, até porque o histórico de embates entre os tribunais europeus e os tribunais constitucionais nacionais é largo e complexo. Sem embargo, parece-me que uma decisão desta natureza merece reflexão.
A Constituição de um Estado é um contrato entre este e os seus cidadãos, que fundamenta a existência daquele Estado nos moldes em que existe, guiando a atividade pública e privada em sociedade. É a esse contrato que os tribunais constitucionais regressam para decidir; essa decisão é, por isso, um regresso aos princípios e regras basilares que sustentam a existência daquele Estado. Cabe ao Tribunal Constitucional proceder a essa avaliação.
Sendo a União Europeia uma organização supranacional à qual os Estados-Membros têm vindo a ceder partes da sua soberania, a sua existência emana dos Estados que a compõem. Ainda assim, a própria UE tem vindo proactivamente a trilhar o seu caminho, com a ajuda do Tribunal de Justiça da União Europeia que, não raras vezes e com um quê de criatividade, dá um empurrãozinho à integração europeia. São exemplos disto a criação do princípio do primado e do efeito direto, que, apesar de nunca terem sido inscritos nos tratados, são aplicados.
Não obstante este ímpeto acelerador da integração, nunca se chegou à formação de um Estado federal que se sobrepusesse às constituições nacionais que, naturalmente, subsistem.
Com o passar dos anos, fomos assistindo a um progressivo alargamento das competências da União Europeia, num reconhecimento claro das suas mais-valias, através de processos dos quais podíamos extrair a anuência dos cidadãos europeus. Estes mesmos cidadãos foram igualmente colocando limites à criação de uma espécie de “Estados Unidos da Europa”, por exemplo, através da rejeição da criação da Constituição para a União Europeia em 2005.
Ainda que algum do conteúdo desta Constituição para a União Europeia tenha acabado por ser reformulado e incluído no Tratado de Lisboa em 2007 – a base da União Europeia como a conhecemos hoje –, um ponto permaneceu claro: os Estados-Membros ainda são quem decidem o futuro da União.
Os poderes desta última resultam de cedências dos primeiros e não o contrário. Ou seja, não obstante a autonomia de que a UE goza para prosseguir os seus fins, são os Estados-Membros que permitem a sua existência; não é a União que abdica de soberanias, permitindo a existência dos Estados.
Posto isto, a minha inquietação com a decisão do Tribunal de Justiça é que, de acordo com a interpretação que faço (e que, admito, pode estar errada), o Direito da União Europeia se pode sobrepor às normas previstas ou extraídas da Constituição nacional, ao permitir que um tribunal nacional não aplique uma decisão do Tribunal Constitucional, que está a aplicar a Constituição nacional.
Ora, na prática, o que teremos é que o Direito da União Europeia – todo, e não apenas os tratados fundadores – se poderá sobrepor às Constituições dos Estados soberanos que sustentam a própria União Europeia. Uma submissão das regras constitucionais nacionais à validação pelas regras europeias levanta, a meu ver, problemas de legitimidade política e democrática.
Se a União Europeia é uma criação dos seus Estados-Membros, como pode a lei fundamental desses mesmos Estados subjugar-se ao Direito emanado pela sua criação? E com que legitimidade, se os Estados-Membros mantêm uma grande parte da sua soberania e os cidadãos rejeitam (pelo menos por enquanto) a criação de um Estado Europeu que se sobreponha ao nacional?
Um dos grandes debates em torno do presente e futuro da União Europeia prende-se precisamente com a ideia de que esta padece de um défice democrático. Ou seja, que os poderes que exerce não emanam diretamente da vontade popular, que também carece de poderes de fiscalização das políticas levadas a cabo por várias instituições europeias.
Ora, esta decisão do Tribunal de Justiça parece-me ter o potencial para suscitar novamente esta questão: estará a União, através desta decisão judicial, a dar um passo maior do que a perna, ganhando poder sobre os Estados-Membros sem a existência de uma vontade política e/ou popular neste sentido? Não tenho, para já, uma resposta definitiva para dar, mas é importante que pensemos sobre o assunto.
Eu sou convictamente a favor da União Europeia. Mas sê-lo não significa dizer sim a tudo sem a questionar. Aliás, considero que sê-lo é, essencialmente, questionar o rumo que estamos a tomar, pois é assim que desfazemos incertezas sobre o caminho que queremos seguir.
E esse caminho, na minha muito humilde opinião, não se faz dissociando as instituições das pessoas; antes pelo contrário.
É assim que conseguiremos a legitimidade necessária para uma União Europeia verdadeiramente forte, política, económica e socialmente.
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