de Madalena Prata
“Baseado numa história verídica”, o ímpeto wikipediano das biografias cinematográficas é um género que atrai facilmente as audiências mainstream, bem como as mais ilustres.
Há um perpétuo fascínio em assistir à caracterização de figuras públicas que durante a sua vida alcançaram notoriedade, ausentando-nos da estéril realidade e iludindo-nos com o mito do sucesso e da fama. Se a narrativa se centrar num artista musical globalmente apreciado adiciona-se o efeito emocional da música do artista. Como Nabokov provocadoramente descreve o impacto da relação entre o ouvinte e esta arte; é a forma mais primitiva e animal na escala das artes, e de uma qualidade mais modesta. O subgénero das biopics musicais encontra-se mediocremente estagnado e sem hibernação à vista. O ano vai a meio e já assistimos à estreia de duas, com muitas mais anunciadas. Os cordéis das marionetes destas narrativas são demasiado visíveis, criando uma similitude gasta:
Ouvimos as vozes do público ao rubro, uma silhueta reconhecível por todos nós caminha pelos corredores dos bastidores de um espetáculo. As mesmas vozes intensificam-se, o músico pára antes de entrar em palco. E com um ar contemplativo, viajamos à sua infância, onde um evento traumático ocorre, normalmente a morte de um irmão. Esta tragédia provoca uma ruptura na vida familiar, vê-se obrigado a fugir para perseguir uma carreira musical. Forma a banda e assistimos a uma irrealista conceção de um dos primeiros hits que convence um cético produtor musical. Segue-se uma rápida montagem de provas do seu sucesso imediato. O primeiro casamento não resiste à nova realidade, repleta de drogas e extravagâncias. Com o divórcio e a pressão do sucesso, a adição torna-se destrutiva e afeta o desempenho da banda. Abandonado por todos, confronta os seus traumas e reinventa-se. E regressa aos palcos. Voltamos aos bastidores, reunimo-nos com o contemplativo músico para a reencenação do mais famoso espetáculo da sua carreira. Acaba com um freeze frame acompanhado por uma descrição dos últimos anos da vida do artista.
Esta estrutura é convenientemente pulverizada com cenas que permitam usar situações e diálogos como inquestionável ignição para a entrada das famosas canções do músico que todos queremos ouvir.
Aqui está a fórmula matemática estabelecida por Coal Miner's Daughter e reciclada por Ray, Walk the Line, Bohemian Rapsody, Rocketman, entre muitos e muitos outros, que capitaliza no nosso saudosismo musical destas figuras. Recorrentemente, o processo de transformação tespiana garante, pelo menos, uma nomeação de melhor performance nos prémios da academia, oferecendo uma narrativa apelativa para a imparável continuação da produção destes filmes. Todavia, ao adaptar a vida de músicos destilando-a numa estrutura dramática tão rígida retira-lhes a autenticidade e valor das obras pelas quais são admirados e apreciados. Acabando por não comunicar o que nos cativa e atrai na sua obra e influência cultural.
Quando os filmes se tratam de biopics musicais, há condicionantes burocráticas, nomeadamente, referentes aos direitos de autor. Dependendo dos casos, serão concedidos pelos artistas ou pelos seus representantes legais. Muitas vezes esses envolvem-se no processo cinematográfico por várias razões, mais válidas do que outras. Submetendo estas histórias a um revisionismo histórico que acaba por mutilar a representatividade merecida destas figuras. Oferecendo apenas duas opções a estas biografias: filmes interessantes sem as canções que nos movem ou medíocres sessões de karaoke.
Felizmente, é possível encontrar soluções criativas para colmatar estas restrições, uma delas pode-se ver em Love & Mercy. O filme aborda o processo criativo de Brian Wilson usando apenas dois períodos distintos da sua vida, em vez do famoso arco do berço à cova. Contudo, há dois filmes incrivelmente bem sucedidos que desafiam as convenções estabelecidas pelo subgénero.
O primeiro caso é o de Amadeus, pois devido à distância temporal dos intervenientes, o problema da concessão de direitos está naturalmente resolvido. E apesar dos seus anacronismos, o filme usa-os de uma forma vantajosa ao colocar-nos no ponto de vista tridimensional de Salieri. Algo de que Elvis não conseguiu tirar proveito. Salieri é um narrador com uma perspectiva distinta, um modelo de virtude que fez um pacto com Deus sacrificando qualquer hedonismo na vida, em prol de receber o amor Deste através de talento musical. Na visão de Salieri, apenas o reconhecimento como melhor compositor lhe trará uma satisfação merecedora dos imensuráveis sacrifícios a que se comprometeu. Uma satisfação interrompida pela resposta do criador personificada por Mozart, o indisciplinado, arrogante e imoral que transmite a essência divina através da música. Cego pela injúria cometida, Antonio Salieri falha em compreender o preço torturante do génio do seu rival. Mozart é assombrado pela música que toca na sua mente, e obsessivamente transcreve para a pauta, como a montagem do filme nos transmite. Salieri vive imbuído nas diferenças entre ambos, incapaz de ver a escravatura criativa a que Mozart foi submetido e que lhe nega qualquer equilíbrio. E é apenas na cena mais romântica de Amadeus que nos deparamos com a intensidade da intimidade que os dois partilham durante o processo criativo da composição do Requiem de Mozart, ilustrando o amor e devoção que ambos têm à arte.
Este filme é o que gosto de apelidar de cavalo de Tróia. Como ingénuos troianos somos presenteados superficialmente com uma biografia de Mozart. No seu interior, os gregos acabam por nos conquistar, fazendo-nos refletir sobre uma tendência humana universal de nunca estarmos satisfeitos com a incontrolável natureza da vida, agravada pelo veículo da inveja. Por isso, quando me deparei que o mestre das biografias cinematográficas, Martin Scorsese, talvez tenha encontrado o novo capítulo do seu extenso estudo histórico do crime organizado americano, e, provavelmente, o expressará com a infiltração da máfia na indústria do entretenimento com uma biopic musical de Frank Sinatra, fiquei menos apreensiva.
O segundo caso é mais desafiante, requer uma imersão profunda e significativa na obra e vida do artista para comunicar, com uma inteligência consciente, o respeito das mesmas. Estou, claramente, a falar de I’m Not There, de Todd Haynes. É impossível capturar uma figura monumentalmente enigmática e em constante fragmentação identitária como o Bob Dylan sem aplicar uma estratégia criativa também ela refratada. Seria contraproducente atentar à catalogação de alguém que nunca o permitiu. Deste modo, I’m Not There apresenta uma colagem de 7 fases da vida do músico protagonizada por 6 personagens que fundem o artista com as suas influências artísticas, cada uma delas com o seu próprio mundo. Woody Guthrie, Arthur Rimbaud e Billy the Kid são a mais evidente mescla fictícia das inspirações de Bob Dylan. As 7 vidas cruzam-se carmicamente ao longo da narrativa principal, ilustrando a interação entre o ecossistema e o organismo.
Igualmente, a escolha da abordagem fílmica é informada pelas épocas que retrata, fundindo a história do cinema dos anos 60 com documentos cinematográficos em que o músico é figurado. No enredo de Cate Blanchett, Jude Quinn, justificar-se-ia uma abordagem estilística de cinema verité semelhante aos documentários Don’t Look Back e Eat the Document, de D. A. Pennebaker e Bob Dylan. Contudo, Todd Haynes segue um caminho imprevisto, apenas colhendo e adaptando os eventos destas obras. O cineasta guia-se pela fisicalidade de marionete e felina de um Bob Dylan publicamente controverso, pós-elétrico e sob a influência de anfetaminas, mas também pela música produzida pelo artista neste período. O estilo visual é informado, não só pela alusão fonética da fisicalidade do músico, mas também pelo paralelismo do progresso das carreiras de Bob Dylan e Federico Fellini. Em ambos, assiste-se a uma evolução de trabalhos iniciais com forte caráter realista em obras mais abstratas que apresentam uma ambiguidade entre o plano da realidade e da fantasia, aliando um esplendor onírico e lúdico à procura de significado neste mundo peculiar. Por isso, 8 ½ é a referência mais proeminente, por se tratar de uma autobiografia de Fellini, que explora, entre outros temas, a relação do artista com a sua arte e com o escrutínio a que esta está sujeita.
I’m Not There resulta de uma meticulosa compreensão do sujeito que retrata: uma figura que não é possível ser definida por não ter uma só identidade. Através da representação indireta do artista, os defeitos de cada personalidade são expressos na ausência da censura pelos representantes legais à qual este subgénero é comummente sujeito. Este foi o primeiro filme a que Bob Dylan concedeu os direitos da própria discografia a esta escala sem impor quaisquer limitações. A sua música é o que une os vários fragmentos narrativos, oferecendo a constante necessária que permite capturar o espírito e a alma deste músico singular, enquanto complementa a criação da obra fílmica de Todd Haynes.
No entanto, a indústria cinematográfica continuará a capitalizar no saudosismo primitivo para com a arte musical, e promete-nos uma nova biopic de Bob Dylan protagonizada por Timothée Chalamet, outra de Michael Jackson (certamente desprovida de qualquer controvérsia), e mais quatro, uma para cada membro dos Beatles. Escusado será dizer que sabemos o teor da descrição sobreposta aos freeze frames de George Harrison e John Lennon.
Até lá, recomendo alguns títulos que ilustram e transgridem as convenções impostas por este subgénero:
I’m Not There (2007) Walk Hard: The Dewey Cox Story (2007)
Cineasta: Todd Haynes Cineasta: Jake Kasdan
Amadeus (1984) Inside Llewyn Davis (2013)
Cineasta: Miloš Forman Cineasta: Coen Brothers
Coal Miner’s Daughter (1980) Tár (2022)
Cineasta: Michael Apted Cineasta: Todd Field
The Pianist (2002) 24 Hour Party People (2002)
Realizador: Roman Polanski Cineasta: Michael Winterbottom
Velvet Goldmine (1998) Bird (1988)
Cineasta: Todd Haynes Cineasta: Clint Eastwood
Sid and Nancy (1986) This Is Spinal Tap (1984)
Cineasta: Alex Cox Cineasta: Rob Reiner
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