O Serviço Nacional de Saúde é um dos pilares fundamentais da (nossa) democracia, sendo baseado na ideia de que a classe ou estatuto social não deve/m ser impedimento ou dificuldade no acesso a cuidados de saúde.
de Rebeca Paiva
Na teoria (que é como quem diz, na Constituição), o direito à protecção da saúde é concretizado: “Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.
Na prática, é o que diariamente assistimos nos noticiários, artigos de opinião e hospitais. Ainda com a consciência de que os últimos dois anos representaram um período excecional – a pandemia colocou pressão adicional num serviço que já se sabia frágil, seria errado associar todos os problemas do SNS à COVID-19 (como se em 2019 não existissem utentes a esperar horas intermináveis nas urgências e 4 anos por uma consulta de especialidade).
Os problemas são vários e duradouros. Há quem defenda que a forma como o Serviço Nacional de Saúde está organizado (politicamente) é insustentável e com demasiados custos a nível de financiamento, mais do que o necessário noutros modelos. Não partilho dessa opinião. Considero a saúde não como uma despesa (no maior sentido deste conceito) mas um investimento no bem comum das pessoas e sociedade, que não deve estar vinculada pelo sector privado, tanto em termos de financiamento como na tomada de decisões estratégicas. Aliás, a própria idealização de um serviço de saúde público (ou tendencialmente público) assenta na concepção de que a saúde deve constituir uma parte fundamental do “Estado Social” e não integrar um negócio cujas decisões são completamente externas a quem dele usufrui. O SNS não deve ser considerado insuficiente, pois deve possuir os serviços mínimos de saúde para toda a gente. Afinal, o que se passa com o SNS?
Os cursos de medicina têm a particularidade interessante dos estudantes trabalharem obrigatoriamente no sector público para poderem aderir à Ordem (e, posteriormente, se quiserem, poderem escolher uma especialidade). Depois de concluírem a especialidade (entre 4 e 6 anos, que acrescem ao mestrado integrado e ano comum), são finalmente considerados autónomos nas suas funções e decisões. Decisões estas que passam, muitas vezes, pela “migração” do SNS para o sector privado.
Não se verifica uma falta de médicos em Portugal. Existem insuficientes profissionais de saúde no SNS, o que, não sendo novidade, constitui uma realidade do período pós-pandemia, onde a recuperação acontece de forma mais lenta do que desejaríamos.
Há inúmeros motivos para os profissionais de saúde optarem por trabalhar em regime privado em detrimento do público (ou em ambos, em detrimento da exclusividade). Muitos estão motivados por carreiras atrativas, melhores horários, menos tarefas administrativas e uma carga de trabalho mais adequada. Em suma, encontram melhores condições laborais, que vêm acompanhadas muitas vezes por salários mais altos (ler artigo no Sindicato Independente de Médicos).
Ninguém é obrigado a trabalhar no público para “compensar o investimento na educação”, muito menos no que toca a um dos poucos cursos cuja formação implique trabalhar no público. Não fazendo sentido a obrigatoriedade da exclusividade, urge a implementação de incentivos de vários tipos para a retenção de profissionais no SNS. Correndo o risco de me repetir, estes incentivos têm de passar por recompensas (salariais), mas incluírem ainda um conjunto de políticas de estabilidade, perspectivas de progressão na carreira e uma conciliação benéfica e positiva entre a vida profissional e pessoal (um tema que dá pano para mangas, bem sei).
Acima de tudo, é importante que decisores/as políticos nos Ministérios estejam conscientes de que o “amor à camisola” não paga renda, nem férias ou outras despesas ligadas ao lazer e descanso, e que a defesa acérrima do SNS não costuma ser suficiente para muitos profissionais fazerem horas extra constantemente, que não só não são pagas como também prejudicam as suas vidas e dinâmicas pessoais e familiares.
As questões que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta, como meio milhão de consultas por realizar, mais de 2500 médicos e enfermeiros a saírem do SNS e os recentes encerramentos temporários de serviços de urgência obstétrica preocupam, sobretudo, numa visão de longo prazo; em que o chamado “inverno demográfico” nos leva a concluir que, ao continuar com as mesmas políticas, a perspectiva remete para a decadência do serviço que já presentemente está vulnerável.
O SNS pode ter todos os recursos para a manutenção de cuidados de saúde necessários (emergentes e de prevenção), se for considerado pela sociedade (e por quem decide) como prioritário, e, portanto, se tiver a atenção que merece.
À fragilidade atual, acresce a inexistência de serviços de medicina dentária e o desinvestimento no campo da saúde mental: apenas 5% do investimento do SNS (que possui somente 250 profissionais de psicologia). Portugal é um dos países da UE com a maior prevalência de depressão crónica e o maior consumo de antidepressivos, que poderia, de acordo com médicos psiquiátricos como Henrique Pratas Ribeiro, ser reduzido com uma maior atenção e investimento à saúde mental nos cuidados de saúde primários. Se é certo que o aumento deste consumo não conduz obrigatoriamente a um aumento do número de pessoas com depressão, a verdade é que se estima que 10% (!) de todas as pessoas em Portugal sofram desta doença. Se existe uma falta de consultas de terapia psicológica no sistema público, no privado deparamo-nos com um cenário em que o custo médio de uma consulta de psicologia equivale a cerca de um dia e meio de trabalho.
A conexão entre a saúde mental e precariedade laboral começa a ganhar destaque e importância. O modo como o mercado de trabalho evoluiu e se globalizou coloca a sociedade em gestão da exaustão e da falta de “tempo para viver”: o médico psiquiatra Pedro Morgado explica que o desenvolvimento da síndrome de burnout se deve a “uma realidade complexa e que está, seguramente, relacionada com vários fatores: os baixos salários, a instabilidade contratual e a maior preponderância de modalidades contratuais baseadas na prestação de serviços sem vínculo contratual”, que pode evoluir para depressão e perturbações de ansiedade. Portugal é ainda o país da UE com a maior prevalência de casos de burnout.
Não faltam depoimentos sobre exaustão emocional e burnout. Com estas condições de trabalho, o SNS manterá a vulnerabilidade atual, e, futuramente, prevê-se um aumento significativo da sua fragilidade.
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