Focamo-nos, maioritariamente, na resposta individual no que toca à prevenção do suicídio, e não podemos continuar a ignorar a dimensão comunitária da solução, tal como não podemos mais virar os olhos à sua relação com a crise democrática que surgirá do avanço da crise climática.
Texto de Raquel Moreiras
Termo cunhado pelo filósofo Glenn Albrecht, solastalgia é um neologismo com origem na palavra nostalgia (do Latim Moderno), e baseia-se em duas raízes latinas, que dizem respeito a consolo e desolação. Albrecht descreve-o como “ter saudades de casa estando em casa, e sentir a angústia da mudança e deterioração do que é familiar”, “uma erosão gradual da identidade criada pelo sentimento de pertença a um determinado lugar amado, e um sentimento de angústia ou desolação psicológica quanto à sua transformação indesejada”. Esta é a palavra para traçar a experiência existencial que assola aqueles que andam aqui a prestar atenção.
Aproxima-se o fim da História (ou, pelo menos, é o que dizem por aí). As alterações climáticas representam um risco presente e futuro para a nossa sobrevivência. Sabemos que é necessário e urgente reduzir emissões de G. E. E.’s enquanto erguemos novas e mais resilientes infraestruturas, que precisamos de políticas públicas que consigam mitigar os efeitos socioeconómicos e dar lugar a uma organização social igualitária e sustentável, que a verdadeira acção climática terá de remodelar a sociedade, e nada menos do que isso será suficiente. Não é segredo que, à semelhança da pandemia causada pelo Covid-19, a crise climática é uma crise de saúde pública. Sabemos que nos aguardam, ao longo dos próximos anos, catástrofes naturais e colapsos sociais com uma dimensão maior do que conseguimos prever. Como com tudo o resto, parece que é suposto sentir absolutamente nada em relação a isso. Continuar todos os dias como se tudo acontecesse à nossa margem. Há quem consiga baixar a cabeça e seguir como se nem lhe dissesse respeito (e talvez ache que não diz), meter a dúvida existencial no bolso e voltar os olhos para o mundano (essas míticas criaturas capazes de serem “realistas”, “descoladas” e apáticas - que às vezes invejo), e há quem não. Quem se atreve a mergulhar um pouco mais fundo, transpondo a superficialidade característica da discussão presente no debate público, muitas vezes dá por si a questionar o que significa exatamente “o fim de tudo aquilo que conhecemos”, acabando por se perder na imensidão desta nostalgia do avesso. A consciência de que o aparato da máquina do mundo parece guiar-nos para o abismo planta uma certa semente de inquietação, cujas consequências ainda são, na sua maioria, invisíveis - mas nem por isso menos devastadoras.
A velocidade e intensidade da ameaça climática têm as suas raízes nos comportamentos humanos. Consequentemente, advêm da psicologia humana. Os pensamentos, sentimentos e emoções das pessoas quanto ao mundo que nos rodeia e a adaptação social que nos espera têm um lugar de honra naquela que será a transformação do mundo - quer queiramos, quer não. Por estarem no cerne das nossas acções, impera a consideração destas respostas psicológicas à crise climática no seu combate. A par da insegurança alimentar, das ondas de calor ou das doenças infeciosas que se espalharão mais facilmente, aguarda-nos a deterioração da saúde mental e do bem-estar emocional a nível populacional, bem como um aumento do risco de corresponder a critérios de diagnóstico para distúrbios ou doenças mentais. Para aqueles de nós que já sofrem com algum tipo de patologia ou diagnóstico (quase um quarto dos portugueses), as mudanças climáticas agressivas espelharão também um agravamento da ocorrência e intensidade dos seus sintomas. Por fim, está também previsto o aumento da presença de ideação suicida, de pensamentos, tendências e tentativas de suicídio, bem como o incremento do número de suicídios em si (cerca de 1% a mais por cada 1ºC no aumento da temperatura global, para ser exata). Estima-se que, até 2030, mais de 22 000 pessoas coloquem fim à sua própria vida como resultado direto ou indireto da crise climática. Estas são 22 000 pessoas que vão sentir o planeta a girar sobre si mesmo, pesado e custoso, chegando à conclusão de que estarem vivas, aqui, com aquilo que temos e fizemos do que nos deram, não vale a pena. Milhares de pessoas que, por alguma razão, não conseguiram a ajuda de que precisavam, e se vão sentir demasiado sufocadas na sua ineptidão e sós na sua angústia. Irónico, certo? No mínimo. Triste, também. Quem culpar por estas mortes? A quem pertencem as mãos manchadas de sangue? Por mais “adoros” que tenhamos em publicações do dia (ou do mês ou do ano ou do evento ou o que quer que seja desta vez) da importância da saúde mental, já teremos nós coragem de admitir que estas pessoas não são vítimas de si próprias, mas sim de um sistema que vende a infelicidade em packs de 3 por 2? Que lucra com as desigualdades, violência e opressão das pessoas e destrói o planeta? Que nutre e acalenta carinhosamente condições que levam estes seres humanos que se cruzam connosco todos os dias, que vão para o trabalho, cuidam da sua família, saem com os amigos, contam piadas e veem o sol nascer, a simplesmente decidir morrer?
Tanto as alterações climáticas como problemas de saúde mental estão intimamente interligados com desigualdades sociais (leia-se: de classe). Torna-se num círculo vicioso: pessoas com problemas mentais acabam por sofrer mais instabilidade laboral e habitacional, bem como discriminação e exclusão; enquanto isso, pessoas sem condições materiais que lhes permitam gozar de uma vida digna, principalmente vítimas de pobreza, racismo, misoginia e homofobia, apresentam um maior risco de desenvolver problemas de saúde mental. Neste momento, as listas de espera para consultas de Psicologia no SNS já vão em vastos meses, enquanto apenas um quarto dos doentes consegue tratamento e só 10% recebe o tratamento adequado. Só existem cerca de 2,5 psicólogos para cada 100 mil habitantes e os Gabinetes de Apoio Psicológico das escolas e instituições de Ensino Superior estão completamente sobrelotados, deixando centenas de pessoas com a única hipótese de tentar a sua sorte na saúde privada, onde os preços são exorbitantes e inacessíveis para muitos. Os próprios profissionais estão sobrecarregados, com condições precárias que os impedem de, na sua maioria, conseguirem prestar o adequado acompanhamento de que os pacientes tanto necessitam. Já durante a pandemia comprovámos que, à medida que desce o nível de saúde mental dos indivíduos, também desce a sua produtividade (o que levanta um colossal problema para o bem-estar do grande capital, que nos sussurra que o nosso valor enquanto seres humanos está intrinsecamente ligado ao nosso valor económico), e que um aumento na taxa de desemprego vem de mãos entrelaçadas com um aumento da taxa de suicídios. Se, no mundo, atualmente, uma pessoa acaba com a sua própria vida a cada 40 segundos, como é que vamos ter tempo e capacidade para ajudar os milhares que suportam e virão ainda a suportar o fardo de uma doença mental?
Focamo-nos, maioritariamente, na resposta individual no que toca à prevenção do suicídio, e não podemos continuar a ignorar a dimensão comunitária da solução, tal como não podemos mais virar os olhos à sua relação com a crise democrática que surgirá do avanço da crise climática. À primeira vista, cada caso é um caso. Todos queremos acreditar que somos especiais, mesmo que seja na nossa dor, mas a verdade é que existem mais pessoas do que imaginamos a lidar com as mesmas inquietações que nós, e isso pode ser uma coisa boa. Significa que há quem compreenda, o que, às vezes, é o que nos falta. No entanto, compreensão por si só não chega. Sendo o suicídio um dos maiores problemas de saúde pública, exige-se que exista uma resposta pública capaz de lhe fazer frente. Não só aumentar a consciencialização e a prevenção de problemas de saúde mental, mas também reforçar a contratação de profissionais e melhorar as suas condições de trabalho (tanto de psicólogos e psiquiatras como de médicos de cuidados primários) tornando, noutra face da moeda, os processos de diagnóstico, tratamento e acompanhamento mais acessíveis para os pacientes, especialmente aqueles que fazem parte das camadas mais vulneráveis da sociedade. Nas reflexões de Peuchet acerca do suicídio, Marx nota que “devemos primeiro criar, a partir da base, as ligações entre os interesses e as disposições, as verdadeiras relações entre os indivíduos. O suicídio é apenas um dos mil e um sintomas da luta social geral que alguma vez foi travada neste novo terreno. Muitos guerreiros se retiram desta batalha porque estão cansados de ser contados entre as vítimas ou de ocupar um lugar de honra entre os carrascos.” Há vidas que já não podem ser salvas; há vidas que podem. Camus dizia que o suicídio é o mais importante problema filosófico, e tinha a sua razão. Cerca de 75% das doenças mentais começam antes dos 24 anos de idade, o que, pessoalmente, não me choca. Nós somos a geração que, muito antes dos 30, tem de fazer paz com as manchetes que nos dizem que o mundo vai acabar quando chegarmos à idade dos nossos pais. Não escolhemos a solastalgia, ela é-nos imposta.
No início, pensamos que tudo isto vai durar para sempre. Nós e o nosso cimento e os nossos carros e as nossas fronteiras, com os nossos cursos e empregos e estatutos. Dói quando nos apercebemos de que não vai; de que não pode continuar como já acreditámos. Quando observamos a inacção política e social face ao Adeus que parece aguardar-nos, paciente mas insaciável, é de esperar que haja lugar para revolta e tristeza. Sei o que é ter de fazer o luto do que cremos ser possível. Sei o que é viver na bolha do realismo capitalista, e quão indescritivelmente impotentes nos podemos sentir face ao desmoronar à espreita em tudo o que se entranha e se envolta na nossa existência. Por essa razão, e porque sei o que é estar disposta a morrer pela transformação do mundo, sei agora também que o grande ato revolucionário poderá ser, sim, viver por ela. Se há coisa de que há pouco nesta vida, é sentido. Queremos acreditar num propósito, mas fomos deixados aqui, nesta Terra, neste planeta minúsculo na imensidão de um Universo em constante expansão, por razões que não sabemos, e que podem nem existir. Mesmo assim, tentamos tanto: concebemos formas de comunicar o que precisávamos e sentíamos; descobrimos coisas fascinantes e mirabolantes; aprendemos, questionamos, criamos; procuramos respostas. Se puder humildemente opinar, as perguntas valem muito mais do que qualquer explicação. E se a resposta for apenas que estamos aqui, agora, e que o futuro se estende perante nós e podemos moldá-lo como barro? E se o significado da vida for apenas rejeitar o fatalismo e aproveitar o escasso tempo que temos uns com os outros, fazendo tudo o que pudermos para criar a felicidade? Se nada significa nada, isso não quer dizer que temos, em nosso poder, a capacidade de criar o nosso sentido? E se a nossa razão de ser puder simplesmente ser perdermo-nos no devaneio de almejar um mundo melhor? “Porquê dormir se o objetivo da vida é desfrutar ao máximo da criação?” Porque não olhar a solastalgia nos olhos e dizer: “quem ergue os pilares desta casa
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