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The Velvet Underground & Nico: da sinestesia à desolação

Tomorrow's culture is always dictated by the artists, not the critics" – dizia David Bowie, em 1996, a respeito da enorme influência dos The Velvet Underground no rumo da música popular moderna, claramente em contraste com a fraca popularidade inicial da banda e com a sua aparente invisibilidade perante os críticos da época.

de Francisco Pinto




The Velvet Underground & Nico (ou “O álbum da banana”), de 1967, é incontornável enquanto um dos álbuns fundadores da música moderna, tendo comprovadamente influenciado grupos como Nirvana, Joy Division, The Smiths, The Strokes e o próprio David Bowie, e incorpora, em si, algumas das características do rock psicadélico da época, embora goze de um estatuto particular enquanto álbum de vanguarda que torna difícil a atribuição de rótulos.



“Sunday Morning”, tema introdutório do álbum, começa com a melodia de uma celesta, que produz um contraste entre a musicalidade, associada à alegria do acordar a um domingo, e as palavras melancólicas de quem vê, no mesmo acordar, um terrível lembrete da irrecuperabilidade do tempo, do qual restam apenas as memórias dos “wasted years so close behind” e o desejo de regresso a uma infância de manhãs solarengas de domingo, ao som de uma celesta.



Sendo a sensação física um elemento fortemente explorado pelo álbum, não surpreende que nos deparemos com o tema das drogas mais do que uma vez à medida que nele vamos mergulhando.


Se, em “I’m Waiting For The Man”, o piano, em ritmo permanentemente acelerado no refrão, mostra um foco particular na ansiedade de um indivíduo que perdeu a liberdade para a próxima dose, o tema “Heroin” parece ser aquele que, de forma mais sinestésica, pinta uma viagem de sensações oscilantes que culminam na autodestruição do protagonista.

A estrutura de “Heroin” baseia-se em ciclos introduzidos por 2 acordes lentos de guitarra, que vão ficando progressivamente mais rápidos em simultâneo, com o ritmo da bateria, para depois regressar à lentidão inicial; à medida que tais ciclos se vão repetindo, o acelerar dos instrumentos intensifica-se ainda mais, como se de um coração prestes a explodir se tratasse, até que a melodia do violino passa de uniforme a rasgada, anárquica e propositadamente incomodativa, num feixe de sinestesias que parecem culminar na morte do protagonista, com a qual termina o tema.


Do desânimo de “Sunday Morning”, às drogas de “I’m Waiting For The Man” e “Heroin”, passando pela prostituição em “There She Goes Again”, The Velvet Underground & Nico parece fazer jus ao nome, na forma como explora o lado mais profundo e obscuro da existência humana.

De facto, muito do mérito artístico do álbum reside precisamente nessa capacidade de pegar em temas pouco comuns, e até tabu, e de provocar o ouvinte com melodias heterodoxas de vários instrumentos, a fim de o mergulhar na história que os versos contam.



Para além de “Heroin”, também “Venus in Furs” é exemplo do que acabei de descrever: sendo inspirada no livro de Leopold Von Sacher-Masoch, de igual nome, trata-se de uma música descritiva das práticas sadomasoquistas de um indivíduo marcadamente cansado e sedento de sensação e em toda a atmosfera musical, criada pelos rasgos de violino e guitarra elétrica (por vezes propositadamente desafinada), se torna evidente, não só o cansaço psicológico do protagonista, mas também toda a estranheza e morbidez do ambiente que o rodeia.



Posto isto, se uma análise arrojada nos levaria à ideia de que a abordagem do álbum a tais assuntos constitui uma excessiva romantização dos mesmos, no sentido de os classificar como benignos, um olhar mais prudente e contextualizado sobre o estado e destino das personagens que vão surgindo parece até sugerir o contrário.



“All Tomorrow’s parties”, último tema que analisarei, reúne em si um aspeto central que parece universalizar-se ao longo do álbum: o confronto entre a procura pela sensação e uma incurável (e sempre presente) desolação. Neste tema, tal confronto torna-se particularmente evidente a partir da história de uma rapariga que escolhe o vestido que levará para a festa do dia seguinte, na qual chorará “behind the door”, escondida dos olhares dos presentes, num estado de inquietação, marcado desde início pelo ritmo do tambor, pela intensidade do piano e pela voz fatal de Nico.



A repetição dos versos “And what costume shall the poor girl wear / To all tomorrow’s parties?” e “And cry behind the door “, ao longo das várias estrofes, torna evidente tratar-se de uma recorrente espécie de supressão da própria identidade, exercida através de vestidos insignificantes com os quais a protagonista se sente obrigada a apresentar-se, a fim de construir uma identidade fundível com o que encontrará na festa. Perante a dificuldade em concretizar e manter intacto o disfarce que constrói, resta-lhe virar-se, mais uma vez, para o “Sunday Clown” e chorar longe dos demais, ciente de que, na festa seguinte (ou no futuro em geral), não conseguirá evitar escolher outro insignificante vestido.


Na sua sonoridade psicadélica, envolvente e vanguardista, The Velvet Underground & Nico é um álbum a revisitar nos termos definidos por Andy Warhol quando desenhou a famosa capa da banana: “Peel slowly and see”.

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