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Totoro e Mickey entram num bar



Muitas vezes somos tentados a assumir que há sentimentos “bons” e sentimentos “maus” e que estes últimos devem ser reprimidos a todo o custo. Esta ideia começa na infância e os filmes infantis acabam por ter um papel relevante na perpetuação desta dicotomia.



Ensaio de Constança Cardoso



Quem cresceu na viragem do século provavelmente terá as mesmas referências no que toca a desenhos animados. No recreio, havia quem jogasse com Beyblades, cartas de Yu-Gi-Oh ou de Pokemon, havia quem preferisse brincar às princesas ou aos piratas e quem inventasse as suas próprias brincadeiras, mas as nossas personagens preferidas vinham quase sempre de dois lugares: Japão e Estados Unidos.


Do lado oriental, estas gerações foram muito marcadas pelo Shonen, anime principalmente direccionado a rapazes, como Naruto e Dragon Ball, e pelos filmes de animação da Studio Ghibli, dos quais são referência A viagem de Chihiro ou O Castelo Andante. Do lado ocidental, a principal referência foram os filmes e séries da Disney-Pixar que dispensam apresentação. Estes gigantes da animação infantil foram e continuam a ser uma referência incontornável na infância das últimas gerações. Mas à parte disso, terão assim tanto em comum? A meu ver, há diferenças significativas entre o anime infantil japonês e a animação clássica da Disney que, acima de tudo, ilustram formas diferentes de lidar com as crianças.


Em primeiro lugar, parece-me que, embora quase todos os protagonistas dos clássicos da Disney sejam órfãos, nunca há uma reflexão profunda sobre o processo de luto. As personagens perdem um ou ambos os pais quando são demasiado novas para se recordarem disso e essa perda raramente é relevante para o seu desenvolvimento. A morte é algo que sabemos que ocorreu através do enredo, mas que não tem qualquer expressão na personagem. Acima de tudo, é um facilitismo de narrativa. “Dá jeito” que a personagem não tenha de lidar com pais para o enredo se poder desenrolar naturalmente. A grande excepção será, claro, O Rei Leão.


Quando falamos de Shonen, a situação inverte-se. A morte de familiares e amigos tem um papel central no desenvolvimento do protagonista, cujo crescimento normalmente acompanhamos. Naruto e Fullmetal Alcheimist: Brotherhood ilustram bem a centralidade do luto no enredo. Os protagonistas de ambas as séries são obrigados a lidar com mortes de familiares e amigos que nunca servem meramente um propósito trágico. Cada uma dessas mortes é seguida de um processo de luto e de maturação. Ao público-alvo, crianças a partir dos 10 anos, é então transmitida a ideia de que, pela vida fora, terão de lidar com situações traumáticas, incluindo a morte de entes queridos, que irão marcar um antes e um depois na sua história. Mas esses desgostos são também uma parte fundamental de quem somos e, apesar de difíceis, são experiências que nos trazem maturidade, empatia e ferramentas para lidar com o mundo daí em diante.


O desenlace final das histórias é outro grande ponto de contraste entre a animação infantil japonesa e a norte-americana. O conceito de "final feliz" é algo bastante “disneyano”. Não há, que me lembre, nenhum protagonista de um clássico filme da Disney que, no final da sua jornada, não tenha tudo, ou quase tudo, aquilo que desejava (que tantas vezes é um príncipe ou uma princesa). Há uma excepção algo traumática: Papuça e Dentuça, inseparáveis amigos de infância, são obrigados pelos papéis opostos que lhes são incutidos, caçador e presa, a separarem-se para sempre no final do filme.


Os clássicos filmes da Studio Ghibli, que acaba por representar uma espécie de “Disney japonesa”, não costumam ter finais trágicos, embora também os haja. Ainda assim, é raro serem totalmente felizes. Isto porque parece haver sempre uma ideia de sacrifício associada ao sucesso das personagens. No fim d’A viagem de Chihiro, a protagonista consegue voltar para os seus pais, mas perde o caminho de volta para o mundo encantado que descobriu e para o seu grande amigo, Haku. San e Ashitaka, em A Princesa Mononoke, conseguem unir forças para restaurar alguma harmonia entre o povo mineiro e a floresta. No entanto, a relação entre os dois protagonistas não dá aso a um final romântico, como seria de esperar num clássico Disney. Em vez disso, seguem caminhos opostos, voltando cada um para as suas famílias.


O que estes desfechos podem ensinar às crianças é que na vida não se pode ter tudo. Há que tomar escolhas difíceis e, por vezes, aquilo que desejamos não poderá ser alcançado sem sacrifício. Os dois Shonen já mencionados, principalmente Fullmetal Alchemist: Brotherhood, ilustram bem esta ideia. A par da importância do sacrifício, esta série ensina-nos que para cada acção há uma consequência. Os dois irmãos protagonistas são jovens aprendizes de alquimia, que se caracteriza pela lei da troca equivalente: para se receber algo há que se estar disposto a sacrificar algo de igual valor. Uma das coisas mais importantes que esta história nos traz é a importância da auto-responsabilização, de assumir as consequências dos nossos actos. O que significa, em termos narrativos, que quem escreveu esta história não pensou no seu público-alvo de forma condescendente. Assumiu que este é capaz de lidar com ideias complexas e que pode e deve ter heróis que são frágeis, que falham, que se responsabilizam pelos seus erros e que crescem com eles, assim como as próprias crianças devem aprender a fazer.


Muitas vezes somos tentados a assumir que há sentimentos “bons” e sentimentos “maus” e que estes últimos devem ser reprimidos a todo o custo. Esta ideia começa na infância e os filmes infantis acabam por ter um papel relevante na perpetuação desta dicotomia. O ódio, por exemplo, é um sentimento normalmente associado aos vilões nas histórias infantis. Os maus representam o Ódio e os bons representam o Amor. Em Pocahontas, por exemplo, há uma cena musical em que tanto nativos como colonizadores cantam uma canção de ódio mútuo em que cada grupo chama o outro de “bárbaro”. O pai de Pocahontas, consumido pelo seu ódio aos invasores está prestes a matar John Smith, o amado da filha, quando esta se põe à sua frente para o salvar. Consegue convencer o pai a não ceder à sua ira, e a deixar o amor e a empatia triunfarem. Não quero aqui fazer nenhuma apologia anti-paz-e-amor. Quero apenas chamar à atenção para a forma superficial como é tratado o ódio. Como se fosse totalmente descabido naquele contexto o chefe de um povo indígena querer ajustar contas com colonizadores. Nesta cena é passada a ideia de que ambas as partes estão erradas ao virarem-se uma contra a outra e que, naquele momento, são todos vilões, menos a Pocahontas e o seu amado. Os que se fizeram vilões por escolherem o caminho do ódio só voltarão a ser “bons” quando reprimirem totalmente este sentimento e passarem a falar de amor. Parece-me que esta é uma maneira não só injusta como pouco saudável de olhar para o ódio, que, por vezes, é totalmente justificado.


Eis outro exemplo de Fullmetal Alchemist: Brotherhood para contrapor esta ideia. Scar, uma das personagens que nos é apresentada ao início como um vilão, é um dos poucos sobreviventes do genocídio do seu povo. É um vingador que se move através do ódio e da dor que carrega. No desenrolar da história, vê-se obrigado a cooperar com alguns dos envolvidos no extermínio que matou toda a sua família, acabando por viver situações profundamente marcantes com essas personagens. Essa experiência faz nascer em Scar uma profunda empatia por pessoas que sempre viu como assassinas e acaba por desistir da sua vingança. O que difere este exemplo do anterior é que ele nunca chega totalmente a perdoar, nem substitui o seu discurso de vingança por um de “amor”. Em vez disso, arranja forma de equilibrar o ódio que não consegue deixar de sentir, com a empatia e amizade que foram crescendo em si silenciosamente. Põe um fim à sua busca por vingança que perdeu o sentido e passa a dedicar-se à restauração da memória e cultura do seu povo.

Onde se permite que as personagens das histórias infantis fujam da dualidade bons vs. maus, encontramos normalmente um desenvolvimento das mesmas mais profundo, mais realista, maduro e com possibilidades pedagógicas incomparáveis às da clássica tendência maniqueísta. Quem viu Naruto Shippuden sabe que neste anime não há practicamente vilões que não sejam altamente aprofundados pela narrativa. Esta série acaba por reflectir bastante sobre como se formam os vilões. Sobre o que é preciso para fazer duma criança um assassino. Isto é importante porque nos faz olhar para a sociedade e para o contexto de origem dos “vilões” como factores responsáveis pelo seu destino. Uma criança que cresceu a ver séries como Fullmetal Alquimist: Brotherhood ou Naruto terá, à partida, mais ferramentas para problematizar os “maus” da comunicação social do que uma que cresceu só a ver Disney.


Pensemos agora nos clássicos vilões da Disney: as madrastas, Ursula, Jaffar, Gaston, Scar, Cruella de Vil, são personagens unidimensionais sem qualquer profundidade. Não conseguimos compreender pelo enredo o que fez com que ficassem “maus”. A sua crueldade nunca é justificada pela história e muito raramente há um processo de redenção. São maus, ponto final.


Para que este texto não pareça um manifesto de ódio à Disney-Pixar, quero deixar claro que, para além das excepções já mencionadas, penso que, a Pixar, principalmente, tem vindo a desafiar cada vez mais as críticas que tenho feito ao longo do texto. Inside Out, por exemplo, parece-me ser um filme bastante revolucionário no contexto em questão. Ensina-nos que não há sentimentos “maus” e que até emoções difíceis como a tristeza não devem ser reprimidas e são fundamentais para uma vida saudável. É preciso também fazer notar que cada vez mais estes estúdios criam personagens femininas carismáticas, independentes e sem o ar tão “abonecado” das clássicas princesas Disney. Mulan, Merida, Lilo e Mohana são bons exemplos dessa “revolução” que tantas vezes falha no mundo do Shonen.


Por último, quero traçar uma diferença que ocorre principalmente entre os estúdios Ghibli e Disney, mas que é menos visível no Shonen e na Pixar: a aparência dos protagonistas. No caso da Ghibli, são sempre crianças normais. As protagonistas dos filmes A Viagem de Chihiro e Totoro são meninas que acabaram de mudar de casa com os pais. São, também por isso, personagens com quem o público infantil se pode facilmente identificar. Não são princesas de corpos bem esculpidos e vestidos brilhantes, não fazem parte da nobreza nem vivem num castelo. São meninas que estão frustradas com a mudança, no caso de Chihiro, ou que passam o dia a brincar e a procurar bichos mágicos, no caso das irmãs de Totoro. Penso que o clássico fascínio da Disney pela nobreza falha em oferecer ao seu público-alvo personagens com as quais este se identifique. Aliás, muitas vezes até tem um papel nocivo ao fazer com que crianças de contextos mais pobres comparem a sua situação com a de uma princesa ou príncipe. O universo das princesas que ensinam estas crianças a amar é-lhes completamente inacessível.


Quis com este texto mostrar de que forma a animação infantil japonesa e a norte-americana abordam as crianças de formas radicalmente diferentes. Apesar de haver sempre muitas excepções dos dois lados, de forma geral o anime infantil tende a ser mais cru, mais pedagógico e menos condescendente. A ambiguidade moral e a profundidade das personagens japonesas enriquecem as histórias de uma maneira que ainda não me parece ser possível na Disney, cujo enredo é quase sempre previsível e estereotípico.


Combater o monopólio da animação mainstream americana é também combater um monopólio de pensamento. Dar menos palco à Disney e equivalentes significa que haverá mais espaço para outros tipos de narrativas, para novos heróis e heroínas e para novas lições. Quanto mais diversas forem as histórias que nos inspiram enquanto crianças, mais ferramentas teremos para compreender o mundo. Há que assumir que na infância também há que saber lidar com sentimentos difíceis e ideias complexas. Que é na infância que se começam a desconstruir preconceitos e falsas dicotomias impostas pelo mundo.

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