É sem dúvida incrível pensarmos como um tubarão pode ajudar a salvar vidas, ou como animais extintos podem melhorar a nossa tecnologia aeronáutica, mas, lembre-se, existem milhões de pequenos e grandes engenheiros por aí.
Crónica de Miguel Barbosa
Estudante de Engenharia Biomédica, FCT-UNL
A 27 centímetros de um pequeno tsunami de 5 milhões de litros de água, é impossível não ficar envolvido pela magia do oceano. E pela não remota inquietação trazida por uma daquelas crianças que, sem razão aparente, decide socar e pontapear o vidro que nos separa, a nós e a elas, de um mergulho indesejado. Felizmente, ainda que não existam navios inaufragáveis, a engenharia por detrás do mágico Aquário Central do Oceanário de Lisboa dá-me a segurança necessária para não procurar os progenitores do pequeno rebelde.
À nossa frente estão mais de 500 espécies marinhas, incluindo o famoso peixe-lua, e mais de 15 espécies de tubarão. Uma destas espécies, o tubarão-de-pontas-brancas, é-me particularmente familiar por coexistir no seu habitat natural com o tubarão-das-galápagos. Apesar de ser muitas vezes considerada perigosa para os humanos, esta última espécie raramente nos ataca. Para mim, enquanto estudante de ciências e futuro engenheiro biomédico, estes animais são particularmente especiais.
Todos sabemos que os tubarões são criaturas lendárias e maravilhosas mas, se são muitas vezes erroneamente retratados como criaturas calculistas e assassinas, também é verdade que estes animais raramente contraem doenças. “É aqui que se vê como a natureza é injusta” dirá o(a) leitor(a). Mas eu diria que é precisamente aqui que a natureza se revela uma verdadeira engenheira! Um dos segredos dos tubarões é a sua superfície anti-bacteriana. Sem recurso a quaisquer químicos, apenas através de um padrão engenhoso formado pela nanoestrutura da sua pele, os tubarões conseguem limitar a aderência de bactérias.Em certa medida é como se a pele de tubarão estivesse para as bactérias como o nosso impermeável está para a chuva. Esta peça incrível de engenharia animal é de tal modo relevante para nós humanos que uma empresa americana, a Sharklet, tem criado superfícies para produtos e equipamentos hospitalares que replicam a nanoestrutura da pele de tubarão. A sua produção não só é barata como também permite reduzir significativamente a taxa de propagação de bactérias em hospitais. Atualmente, a Sharklet está a estudar uma nova abordagem no design dos seus produtos direcionada especificamente para impedir a propagação da COVID-19.
Porém, as surpresas não ficam por aqui. Analisemos apenas mais duas delas que poderá descobrir no Oceanário. Desde os típicos cavalos marinhos de focinho comprido, que são comuns na Ria Formosa, até aos exuberantes dragões-marinhos-folhosos, são várias as espécies destes animais que consegue aqui encontrar. Aparentemente singelos, estes animais são por várias razões verdadeiramente extraordinários. Uma dessas razões é naturalmente tecnológica. A cauda do cavalo marinho é uma intrincada obra de engenharia, possuindo uma arquitetura interna algo invulgar em comparação com a maioria dos animais com cauda. Ao invés de ser arredondada, a cauda do cavalo marinho consiste num conjunto de segmentos quadrados que possuem no seu interior uma série de “juntas biológicas” formadas por placas ósseas e por várias articulações. Este design torna as caudas destes animais mais rígidas mas, ao mesmo tempo bastante mais flexíveis e capazes de absorver grandes quantidades de energia comparativamente às dos restantes animais. Michael Porter, investigador da Universidade de Climpsey (EUA), conjuntamente com outros cientistas e engenheiros está a desenvolver novos instrumentos e robôs cirúrgicos inspirados na cauda dos cavalos marinhos. Os primeiros protótipos revelam já um futuro com aparelhos médicos mais ergonómicos e mais precisos.
Um outro caso notável de engenharia biológica é o dos vermes marinhos. Na realidade, estes animais são verdadeiras caixinhas de ideias tecnológicas, mas falemos de apenas uma. Inspirados pela locomoção destes animais, engenheiros da Universidade de Ben-Gurian em Israel, criaram o SAW, um robot que mimetiza a locomoção dos vermes marinhos, sendo capaz de mover-se em terra e na água. O seu design permite-lhe deslocar-se por caminhos estreitos com notável agilidade e rapidez, o que poderá ser uma mais valia em robôs de resgate. Os criadores do SAW têm estado a desenvolver também réplicas mais pequenas que possam ser usadas como sondas em procedimentos médicos.
Até aqui vimos três contribuições tecnológicas da natureza, mas, atualmente, conhecemos mais de 1,800,000 de espécies diferentes ainda existentes na Terra. Por outro lado, estima-se que todas as espécies extintas contabilizem 98% das espécies que alguma vez existiram no planeta! Não sei se me está a acompanhar, mas se lhe dizem que a vitrine de uma loja tem 50 tipos diferentes de gomas mas, no interior do estabelecimento estão mais 2450 tipos diferentes…Não sei quanto a si, mas, se os primeiros 50 tipos já forem incríveis, não posso esperar por pelo menos conhecer os outros.
Gulosices à parte, é de facto impossível não nos questionarmos sobre a quantidade de conhecimento e novas estratégias tecnológicas que poderíamos extrair quer das espécies que ainda existem na Terra quer sobretudo de todas as que já se extinguiram. Eu sei, a Siemens ou a SpaceX certamente estarão com saudades dos dinossauros neste momento. Mas, como todos sabemos, não há nada a fazer. É simplesmente impossível recuperar estratégias tecnológicas de animais extintos.
Ora, é por estas e por outras que eu me apaixonei pela ciência desde cedo. Como já terá ouvido dizer, nós cientistas e engenheiros trabalhamos muitas vezes no mercado do “impossível”. E aqui não é excepção. Um grupo particular de animais extintos, que não eram dinossauros, mas que foram os maiores animais a cruzar os céus, tem despertado o interesse de engenheiros da Universidade de Bristol, que, conjuntamente com investigadores e paleontólogos, têm procurado compreender a aerodinâmica destes ‘jumbos’ de 160 milhões de anos. Ao contrário das maiores aves voadoras modernas, os pterossauros conseguiam erguer-se do solo sem precisarem de uma “pista de decolagem”. Através de técnicas de computação que permitem criar modelos biomecânicos destes animais, estamos a abrir novos horizontes na engenharia aeronáutica pré-histórica.
É sem dúvida incrível pensarmos como um tubarão pode ajudar a salvar vidas, ou como animais extintos podem melhorar a nossa tecnologia aeronáutica, mas, lembre-se, existem milhões de pequenos e grandes engenheiros por aí. Observe-os, aprenda com eles, proteja-os e quem sabe se eles não o ajudam a mudar o mundo e a fazer a diferença na vida de alguém.
O autor cedeu gentilmente as fontes dos artigos consultados para a crónica:
Martin-Silverstone, Elizabeth & Habib, Michael & Hone, David. (2020). Volant Fossil Vertebrates: Potential for Bioinspired Flight Technology. Trends in Ecology & Evolution. 35. 10.1016/j.tree.2020.03.005;
Karabetça, Aliye. (2015). AIOC'15 Nature Inspired Architectural Designs: Using Biomimicry as a Design Strategy;
M. M. Porter, D. Adriaens, R. L. Hatton, M. A. Meyers, J. McKittrick, Why the seahorse tail is square.Science 349, aaa6683 (2015).
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