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Vamos ter uma conversa séria sobre bicicletas

Quando chega a minha vez de escrever uma crónica, deixo sempre para o último dia a reflexão mais profunda sobre o seu tema. Oportunamente, o tema de hoje surgiu quando abri o Público e dei de caras com a seguinte notícia: “Trânsito em Lisboa e Porto voltou ao que era [antes da pandemia], mas falta gente nos transportes”.


Vamos ignorar o uso duvidoso da adversativa neste título e focarmo-nos num dos temas que tem dominado o debate, acicatado mais recentemente pelas eleições autárquicas especialmente em Lisboa e no Porto: a mobilidade.

de António Vaz Pato




A mobilidade é um tema sensível porque implica com praticamente toda a nossa vida quotidiana. Atrevo-me a dizer que os temas sensíveis discutidos em praça pública estão condenados a uma crescente polarização do debate. Bem sabemos que a polarização - e a crispação consequente - de nada serve para resolver questões fundamentais quando falamos em qualidade de vida nas grandes cidades. Espero com esta crónica provar isso mesmo ou pelo menos produzir uma discussão saudável à volta do tema.


Um facto inegável, que roubo a Jason Slaughter ( recomendo vivamente o seu canal de Youtube, “Not Just Bikes”, é que as cidades não são barulhentas, os carros é que são. Todos nós experienciámos esta situação de uma maneira ou doutra durante a pandemia: as cidades ficaram de um momento para o outro mais silenciosas. De repente, um passeio a pé ou de bicicleta pelas ruas tornou-se um programa muito mais agradável. O ar ficou menos poluído, o ruído continuado dos veículos (um factor de stress com consequências graves para a nossa saúde mental e cardiovascular) desapareceu e a paisagem ficou mais humana. Penso que o impacto dos automóveis na saúde pública é ponto assente e portanto não me vou alongar aqui.


A redução progressiva dos automóveis exige essencialmente alternativas e estas podem dividir-se em dois pólos: os transportes colectivos e os meios de transporte autónomos (a chamada mobilidade alternativa). Vou focar-me na segunda categoria.

Pessoas como eu que gostariam de ver mais bicicletas e outros veículos alternativos nas ruas são geralmente confrontadas com argumentos culturais e geográficos. Em Lisboa é típico ouvir em qualquer discussão de café “Esta cidade não foi feita para bicicletas”.


A primeira razão prende-se evidentemente com a topografia. De facto, há áreas de Lisboa pouco simpáticas para os ciclistas, mas muitas vezes nem é por culpa do declive, é pelo estado do pavimento e pela intensidade do tráfego (já para não falar da falta de civilidade de muitos condutores, outro tema que daria pano para mangas). Lisboa precisa principalmente de uma reforma profunda neste âmbito para tornar a cidade menos hostil. Quanto à inclinação, este factor vence-se facilmente hoje em dia com uma bicicleta (ou semelhante) elétrica ou com uma ciclovia alternativa. O argumento topográfico pode ser ultrapassado com facilidade.


Resta-nos finalmente (e espero que os leitores ainda estejam comigo) a segunda razão: a cultural. E esta espero poder desmistificar de uma vez por todas. Nenhum povo está condenado pelos seus hábitos culturais à inércia do progresso. A cultura pode facilitar ou não um processo de mudança de comportamentos, mas não o torna impossível, a não ser que sejamos acérrimos adeptos do determinismo cultural. É bizarro ouvir dizer que o “português” não tem o costume de andar de bicicleta quando, há umas décadas, esse pressuposto não se verificava. A bicicleta era um meio de transporte comum em muitas cidades. Ainda por mais, somos dos maiores produtores de bicicletas do mundo e uma referência mundial na indústria. Mais tarde, quando o automóvel ficou mais acessível, a promessa de que este traria maior autonomia e conforto à nossa vida vingou. Este parece ser o cerne do argumentário favorável ao automóvel, mas aparte deste, não vejo mais nenhuma vantagem potencial na utilização de um automóvel, dado que o resto é só uma inesgotável fonte de problemas e stress para quem o utiliza. E nem vou enumerar para não encher mais esta crónica com coisas banais.


Invocamos muitas vezes países como os Países Baixos, ou qualquer outro país do Norte da Europa, para ilustrar o argumento de que a sua opção generalizada pelo uso de mobilidade alternativa é o resultado de factores culturais muito distintos dos nossos. Contudo, não há nada de mais falso nesta premissa. Há quatro décadas, a mentalidade holandesa, por exemplo, era muito semelhante à nossa. Havia carros por todo o lado. As principais praças das cidades eram autênticos parques de estacionamento.


O que houve nos anos seguintes foi uma vontade pragmática de mudar esse contexto e dar as condições necessárias às pessoas para concretizar a mudança.

Não é por acaso que os Países Baixos são uma referência em todo o mundo no que diz respeito a qualidade de vida urbana: eles devolveram a rua às pessoas, expulsaram os carros dos centros, promoveram a expansão de ciclovias e de ruas onde só circulam transportes colectivos de superfície e impuseram limites de velocidade rigorosos para reduzir o risco de atropelamentos.


O que descrevo não é de todo impensável nos países do sul europeu como o nosso. Acções semelhantes em cidades ibéricas já foram desenvolvidas, como é exemplo e modelo a cidade galega de Pontevedra, onde um autarca teve a coragem de enfrentar o lobby automóvel e mostrar às pessoas que o aumento do bem-estar e da saúde (mental e física) é possível com medidas simples.


Expulsar os carros da cidade não é abrir uma guerra contra os automobilistas, é uma questão básica de saúde pública. E culturalmente falando, ganhamos todos.

A rua passa a ser de quem a merece, isto é, dos residentes e dos trabalhadores. Uma rua livre pode ser não só um espaço de discussão e conversa como também de criação e manifestação cultural e artística. Pensem apenas, e aqui parafraseio uma ideia de Miguel Anxo Lores - o tal autarca de Pontevedra - no espaço que conquistamos para comunicar uns com os outros dentro dos nossos bairros, provavelmente as unidades culturais mais importantes de uma cidade. Ao eliminarmos os carros das vias, deixam de existir barreiras maiores ao contacto humano, surgindo no seu lugar jardins, parques de jogos, hortas comunitárias e esplanadas.


Quando digo isto, comentarão uns que para chegar a este cenário serão precisas alterações radicais nos hábitos e no próprio desenho e planeamento urbanísticos, quase ao nível de uma utopia. Eu concordo, mas isso não deve dissuadir-nos de caminhar gradualmente até esse objectivo. Alimentar o status quo neste momento é provavelmente condenar-nos a uma vida mais infeliz. E espero que isto esteja na mente dos autarcas que foram recentemente (re)eleitos nas grandes cidades. No fim de contas, a distância que julgamos existir entre o nosso exemplo e o de outros países bem-sucedidos é cimentada, a cada dia que passa, pela falta de iniciativas corajosas, tanto a nível político como comunitário.


Tomemos, portanto, uma acção.

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