Abro no meu computador o PDF com o título «Why revolution is no longer possible?». É do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, um autor que admiro e tenho como referência desde que comecei a estudar Sociologia. Sei que ele é por natureza um pessimista, que todas as suas análises sobre as sociedades capitalistas ocidentais são assustadoras e apocalípticas. Não há salvação e o caminho far-se-á no sentido da autodestruição.
de Cecília Faria
Tela de Francisca Faria (Instagram: @kikaalmodovar)
Porém, este negativismo inerente não significa que as suas teorias acerca das consequências do capitalismo pós-moderno não sejam certeiras e geniais. Byung-Chul Han consegue sempre revelar-nos algo que nos está a escapar e que ainda não compreendemos. Ao ler os capítulos dos seus livros, dou por mim a estabelecer relações entre as suas teorias e o quotidiano que se desenrola à minha volta, a perceber a perspicácia e a adequação das suas ideias à realidade. Este artigo não foi exceção.
«Why is the neoliberal system of domination so stable? Why is there so little resistance to it? Why does the resistance that does occur so quickly come to naught? Why, despite the ever-expanding divide between rich and poor, is revolution no longer possible?». Começo a ler, avidamente, as primeiras frases do artigo. «Porque é que, atualmente, já não é possível fazer a revolução?». A ideia de desistência coletiva pela busca de alternativas, bem como a noção de passividade social perante o avanço e o desenvolvimento de um sistema capitalista cada vez mais selvagem já não é nova para mim.
Recordo as últimas palavras do personagem principal do filme «A Fábrica de Nada» (2017), do realizador português Pedro Pinho. «Ninguém ali quer gerir uma fábrica. Nós precisamos é de qualquer coisa estável, nós precisamos é de ter dinheiro para comer, ‘tás a ver?, para pagar as contas, a escola dos putos. Ninguém vai ser o sujeito histórico que vai derrubar o capitalismo. Por mais nojo que te meta, nós somos isso, nós somos o capitalismo. Esse paleio de esquerda é a maior merda que existe. Se queres fazer uma divisão no mundo, de uns contra outros, não é entre esquerda e direita. É de um lado os que estão de acordo com este mundo, os que aceitam isto tudo, e do outro os que estão prontos a abdicar do conforto, dos telemóveis, das viagens à Lua, dos tupperwares. A notícia triste que eu tenho para ti é que ninguém está pronto a abdicar disso, ninguém está desse lado. E quanto menos recursos as pessoas têm, mais querem vir para o outro lado, o mais depressa possível».
Eu própria não estou disposta a abdicar. Nunca conheci alguém que estivesse. Abdicar verdadeiramente significa deixar para trás o bem-estar e a tranquilidade intrínsecos à produção em massa, às tecnologias, à Internet e a tudo o resto que diariamente «facilita» e «agiliza» a nossa vida e as decisões que temos de tomar. Byung-Chul Han explica no seu artigo que os sistemas capitalistas pós-modernos assentam em estratégias de sedução e não em métodos de submissão através da força. As primeiras são, de longe, muito mais eficazes do que os segundos. Elas permitem que os próprios indivíduos se submetam voluntariamente, aceitem e, sobretudo, desejem manter o sistema e tomar parte ativa nele. O neoliberalismo foi capaz de compreender e incorporar isto no seu modo de funcionamento e de dominação.
Isso torna-se claro se pensarmos na maneira através da qual a conceção de novos locais é única e exclusivamente direcionada para o prazer e para a diversão. Vigora hoje uma organização e uma conceptualização total e intensiva dos espaços e do tempo em função do entretenimento. A urbanização das sociedades pós-modernas faz-se no sentido de construir uma planta urbana totalmente centrada no prazer. São, por isso, construídos lugares equipados com infraestruturas que permitam aos indivíduos a diversão e o lazer. As pessoas tornam-se completamente dependentes desses espaços e daquilo que eles lhes oferecem a nível de consumo.
Mas, acima de tudo, a revolução já não é possível porque todas as parcelas da vida social foram comercializadas e engolidas pelo mercado. Os próprios ideais de partilha e de ajuda no seio da comunidade, que podemos considerar como os últimos resquícios de uma dinâmica anticapitalista, foram sendo apropriados e mercantilizados. Já nada resta.
«“Airbnb” — the computerized marketplace that turns every home into a hotel — has even made hospitality a commodity». O próprio ato de partilhar e de ajudar o próximo e a comunidade foi transformado num serviço como qualquer outro, que se compra e vende no mercado. Dessa forma, esta noção de partilha deixou de representar algo universal e acessível a todos indiscriminadamente. «People without money still have no access to sharing». Agora é preciso ter dinheiro para que os outros queiram partilhar connosco aquilo que é seu. A possibilidade de partilha, daquilo que me pertence, com os outros foi comercializada.
Mais tarde, ao jantar, comento, fascinada, este artigo que li com a minha família e explico-lhes, entusiasmada, porque é que a revolução já não é possível. O meu namorado chama-me a atenção para o facto de a aplicação «Too good to go» ser mais um exemplo desta comercialização dos ideais de partilha. Os restos de comida dos restaurantes podem agora também ser aproveitados e comercializados, contribuindo para a sua margem de lucro. A solidariedade, que nos levava a distribuir pelos mais necessitados as sobras de comida que, caso contrário, seriam, de forma ultrajante, deitadas fora, já foi comercializada através de uma aplicação. Numa campanha de sensibilização realizada pela «Too good to go», com participação de vários artistas, pode ler-se num dos postais: «No waste / Just pleasure».
Caminho pelas ruas de Granada até ao local combinado para apanhar a minha boleia do BlaBlaCar. O carro é um Peugeot 2008 Allure. O condutor chama-se Luís, tem barba, olhos e cabelos castanhos. A viagem já está paga, paguei através da aplicação e agora é só encontrar o carro, entrar e fazer conversa até ao local de destino. Provavelmente, Byung-Chul Han tem mesmo razão, eu e o condutor já só seremos simpáticos um para o outro e faremos conversa banal de circunstância para podermos obter uma boa classificação um do outro e, assim, continuarmos a usar a aplicação para servir os nossos interesses pessoais. A mim nem me apetece conversar, estou cansada e só quero chegar ao meu destino, mas não quero parecer antipática, há pessoas que levam a mal o silêncio.
Não sou tão pessimista quanto Byung-Chul Han, apesar de reconhecer a validade das suas teorias. É verdade que há muita coisa de errado e de doentio nesta comercialização dos atos de partilha e de noção do bem-comum, mas olhar para as pessoas como monstros resignados e apenas movidos pelo desejo de consumo parece-me extremamente deprimente e infrutífero e não consigo viver assim.
Talvez se trate da minha inocência típica dos vinte e um anos, da necessidade que acredito que todos os jovens têm de se agarrar a alguma coisa e acreditar que a revolução (seja ela qual for) ainda é possível. Não, a revolução tem de ser possível e deve estar nos pequenos gestos. A minha irmã ensinou-me isso com os seus quadros. A importância da vida está nas pequenas coisas, nos pequenos gestos de partilha que os outros vão tendo e nos quais nós nem chegamos a reparar. Sei que ainda encontro nos outros uma vontade de partilha genuína e desinteressada e recuso-me a ignorar ou a esquecer esses momentos e esses gestos de amizade sincera que, ao longo da minha vida, tantas pessoas foram tendo comigo.
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